Aventuras abaixo de zero
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 04 de setembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Estive dias atrás com a minha família em um povoado de montanha nos Andes chilenos. Foi muito interessante e prazeroso estabelecer um diálogo entre o nosso imaginário de passar uns dias em um ambiente nevado e o cotidiano de um mundo com temperaturas abaixo de zero. Passamos quatro dias em Farellones, como quem se hospeda em um museu aberto, a pouco mais de 2.300 metros acima do nível do mar, onde há também estação de esqui, uma das mais antigas da região.

Ao lado de Farellones fica a estação do povoado La Parva. Um pouco mais à frente está El Colorado e o Valle Nevado, com suas grandes estruturas de pistas e resorts. Mas escolhemos Farellones porque mais do que deslizar de esqui queríamos encontrar espaços para brincadeiras, para ficar sem fazer nada, para conversar com pessoas do lugar e para admirar as belezas naturais, sem assédio de pressões turísticas.

É deslumbrante a subida para lá. A estrada, sem acostamento, tem quarenta curvas fechadas, com direito a parada no lugarejo de La Ermita para controle dos Carabineros, a respeitável polícia chilena. Ficamos no aconchegante Chalet Valuga, totalmente ocupado por famílias que, como nós, viajavam com os filhos. O almoço era sempre no restaurante “El Montañés”, onde repeti tantas e tantas vezes o delicioso prato gratinado de centolla, o caranguejo gigante do Pacífico.

Combinamos que o carro do hotel nos deixaria em um lugar frequentado apenas pelos moradores locais e que o motorista não precisaria retornar para nos pegar. Fomos deixados, então, no largo Los Pumas, a uns cinco quilômetros do hotel, onde não havia ninguém, somente nós quatro diante da cordilheira e do sol cintilante da manhã. Caminhamos sobre quebradiças lâminas de gelo e, em seguida, aproveitamos para escalar a neve sem pressa, curtindo cada camada da sua formação, cada textura dos seus cristais de gelo, pelos relevos da montanha entre saliências rochosas.

A diversão na neve é como a diversão na areia da praia. Escalar a montanha nevada traz sensações parecidas com as de subir grandes dunas. Apreciar os vãos da cordilheira é como contemplar a imensidão do mar. A paisagem andina gelada é tão bela quanto a paisagem quente da caatinga, que os nossos ancestrais índios chamavam de “Campo Branco”. Tirando os extremos da altitude e da temperatura, ambas são marcadas pelo ar puro, por uma vegetação resiliente, formada por arbustos espinhosos, cactos, carrapichos, flores teimosas, e por pequenos riachos murmurantes.

Na volta a pé para o hotel, entre cansados e maravilhados, recebemos da branquidão sem fim um relaxante estado reparador. As nossas expectativas de como seria esse momento a sós com a montanha de gelo cederam lugar para que aquele mundo nevado ganhasse vida própria também em nós. Era tudo o que desejáramos para comemorar os dez anos do jornal “Aventuras”, que faço com os meus filhos a cada viagem emblemática da nossa família.

O tim-tim dessa comemoração contou ainda com dois outros eventos importantes para a dinâmica do que chamo de “Pedagogia da Viagem”: o reencontro em Santiago com os nossos queridos amigos Tito e Manchi e suas famílias, e a visita que fizemos juntos ao imaginário poético do mar, representado na casa-museu de Pablo Neruda (1904 – 1973) em Isla Negra, na costa do oceano Pacífico. Em Santiago, guiados a leste pela Cordilheira dos Andes e pelo traçado leste-oeste do rio Mapocho, fizemos tudo o que gostamos de fazer em uma cidade com bons restaurantes, espaços culturais, paixão por futebol e mirantes encantadores.

No dia em que fomos, as três famílias, para a Isla Negra (a 140 km de Santiago), paramos para almoçar comida chilena na comunidade ceramista de Pomaire (no quilômetro 68), especializada em potes, panelas e vasos de greda, uma argila preta, parecida com o material utilizado pelas artesãs da Moita Redonda, em Cascavel, no interior do Ceará. Depois, seguimos para o recanto construído por Neruda, onde ele escreveu parte importante de sua obra, inclusive o Canto Geral. Naquela casa, onde o corpo do poeta e da sua mulher Matilde Urrutia estão sepultados, fomos recebidos por máscaras de proa, réplicas de veleiros, conchas e caracóis trazidos de muitos lugares do mundo por onde Neruda andou com suas fantasias marinhas.

Sentindo a força daquele cenário místico na percepção dos meus filhos, resolvi comprar o livro “O carteiro e o poeta” (Edições BestBolso, RJ, 2011), de Antonio Skármeta, para ler com eles ao voltar para casa. Os diálogos do poeta com o jovem carteiro são maravilhosos. Em uma passagem, Neruda lê uns versos: “Aqui na Ilha o mar e quanto mar / Sai de si mesmo a cada momento / Diz que sim, que não (…) que não pode sossegar” (p. 22). E o carteiro, um tanto enjoado do balanço das palavras, comenta: “Quando o senhor dizia o poema, as palavras iam daqui para ali” (p. 23). E, assim, embalados nas ondas daquela paz costeira, voltamos à temperatura normal.