Bandeira de Aço
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 13 de junho de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No mastro do pico mais elevado das obras musicais brasileiras de referência, está hasteado o disco Bandeira de Aço (Papete, selo Marcus Pereira, 1978). Em apenas nove faixas, sendo quatro do Josias Sobrinho, três do César Teixeira, uma do Ronaldo Mota e uma do Sérgio Habibbe, esse trabalho sintetiza um fenômeno musical de jeito próprio de compor e de cantar, como expressão de um coletivo inspirado na poética e nas sonoridades do boi-bumbá, dos tambores, ritmos e danças aflorados na rica e fecunda cultura maranhense.
O repertório desse disco sai do campo da arte para o da música cultual, no sentido daquela que se cultua, daquela que pode ser admirada pelo que congrega de sutilezas e possibilidades de significados, que não o de ser apenas um álbum de composições em sua literalidade. Bandeira de Aço é o que se pode chamar de obra multívoca, por ser mais do que já é em sua dimensão estética. Ao ir além do conceito artístico, revela, na metáfora do boi, uma variada gama de emoções, desejos e sentimentos humanos.
O que mais pode traduzir a impressão de grandeza em discos como o Bandeira de Aço é que ele não reduz a diversidade a um hipotético denominador comum. Ao traçar um percurso ainda não delineado se junta a outras manifestações disruptivas, dando vitalidade e assegurando equivalências a vozes formais e espontâneas. Quando colocadas lado a lado, essas falas dizem de algo emerso da sensibilidade e da expressividade artística da coletividade; por isso, são determinantes para a apreciação e o entendimento do poder criativo da nossa diversidade cultural.
Incluo o Bandeira de Aço na relação de dez discos de grande impacto de cunho coletivo na Música Plural Brasileira da segunda metade do século passado: Chega de Saudade (João Gilberto, 1959), Tropicália (Caetano, Gil, Tom Zé e Os Mutantes, 1968), Clube da Esquina (Milton Nascimento e Lô Borges, 1972), Secos & Molhados (Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, 1973), Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem (Ednardo, Rodger e Téti, 1973), Quinteto Armorial (Antônio Madureira, Antônio Nóbrega, Egídio Nascimento, Fernando Barbosa e Edilson Cabral, 1974), Beleléu. Leléu, eu (Itamar Assumpção e Isca de Polícia, 1980), ConSertão (Elomar, Arthur Moreira Lima, Paulo Moura e Heraldo do Monte, 1982) e Da lama ao caos (Chico Science & Nação Zumbi, 1994).
O diferencial que aproxima essas obras é que elas não se enquadram diretamente em correntes estilísticas de convencionalismos estreitos e circunstanciais, não se reduzindo, nem se restringindo, assim, a categorizações territoriais, geracionais, étnicas ou de gênero. São clássicos, no que um clássico denota de fecundo ao engendrar do tempo. Embora essas obras sejam assinadas pelos artistas que as encabeçaram, elas são marcas de conexões e diálogos de influências, refletidos no papel construtivo e constitutivo do fluxo constante da nossa história, como narrativas de preciosa miscigenação.
Neste caso, o Bandeira de Aço é um trabalho essencialmente inoxidável, em seu caráter anímico, zoomórfico e arquetípico, de sotaque de orquestra, matraca, zabumba e viola. Passados 35 anos do seu lançamento, continua uma obra compatível com a arte contemporânea de qualidade. Como parte da trilha sonora do Brasil profundo, é uma espécie de botija oferecida aos interessados na nossa incomparável cartografia musical, com gosto de sorvete de bacuri e cheiro de catuaba.
Ao esclarecer no encarte que o elepê conta com obras de “compositores de São Luís do Maranhão que se inspiram na cultura popular”, Papete dá ligeiramente o perfil de cada um. Diz que César Teixeira é uma mistura de índio desconfiado com negro de sangue quente e branco letrado; que Josias Sobrinho trouxe do interior toda a alma do caboclo que é, inundada de melodia, ritmo e festa, e que Ronaldo Mota e Sérgio Habibbe são seres urbanos, cujos pontos de vista sociais e políticos dialogam bem com suas intenções poéticas.
Em um enredo que urra, chora, sonha, se comove e se indigna, os autores do Bandeira de Aço falam de aventuras, amores e urdiduras sociais, transpondo para o canto inquietações do viver, da consciência e do coração, na serena e bonita interpretação orgânica de Papete. Enquanto, de um lado, Ronaldo Mota declara sua aflição de encarar a inocência movedora do auto popular em “Ai, essa dor de ver / meu boi vindo me olhar / E sem nada saber / Sem se defender / Chora meu boi” (Boi de Catirina), do outro, Sérgio Habibbe traz o tema para o plano político e sentencia: “Ah, Eulália / Esse boi me leva / Eu não fico mais aqui / Nesse país que não amanhece” (Eulália).
Josias Sobrinho, por sua vez, dá brilho ao sentido da existência em distintas situações e contextos. Com um colar e uma bola de meia no bolso, faz de todos os que viram os filhos saírem de casa as palavras da sua mãe na porta da rua: “Eu te levo, eu te trago” (De Cajarí pra Capital). Iluminado pelas cores da expectativa de quem fita o horizonte, revela uma vontade germinante: “Quero o apito do Engenho de Flores / chamando pra trabalhar” (Engenho de Flores). Põe também em memória a contrariedade das lembranças nostálgicas: “E lá vai meu boi / no romper da aurora (…) dando adeus pra ela / que fecha a janela / trancando meu coração” (Catirina). E aquece o desejo de sublimação de ser: “Se eu tivesse no peito um novelo / Eu tecia com ele um caminho / O rumo voltado pra dentro / E aberto pro mundo todinho” (Dente de Ouro).
A contribuição de César Teixeira se dá em três cativantes vertentes do querer e do viver. Começa com a graciosa imagem inconsciente do espírito de quem faz elevações com um boizinho de mão, feito com “olhos de papel de seda e uma estrela na testa”, para alegrar a festa de São João (Boi da Lua); passa pelo leito de águas turvas e entranháveis dos nossos relevos coloniais: “E quando os espíritos voltarem da guerra / Encherei os olhos da mais suja terra / E ferrarei a mula rumo a Portugal”(Flor do mal); e deságua no deslumbramento da liberdade de poder dizer de si e de gozar dos segredos da alegria: “Mamãe eu tô com uma vontade louca / de ver o dia sair pela boca” (Bandeira de Aço), na música que dá título ao álbum.
Do show em homenagem aos 35 anos do Bandeira de Aço, realizado no Teatro Arthur Azevedo, em São Luís, no dia 28/05/2013, participaram, além do Papete e dos compositores do disco, artistas das novas vozes musicais que o Maranhão oferece ao Brasil. Estavam lá, fazendo a festa, as cantoras Flávia Bittencourt e Dicy, os cantores Madian e Bruno Batista, o grupo Afrôs e a dupla Alê Muniz e Luciana Simões (Criolina), que organizou o evento, dentro da programação do Projeto BR-135 Energia Musical, patrocinado pela Cemar (Companhia Energética do Maranhão), por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura.
As comemorações a esse antológico álbum musical ganharam ainda outras novidades da parte do Papete. O instrumentista e cantor, que um dia saiu de Bacabal para ser reconhecido várias vezes pela crítica estadunidense e europeia como um dos melhores percussionistas do mundo, fez novos arranjos para as músicas do Bandeira de Aço, juntando-as a novas composições, e lançou na terça-feira passada (11/06) no espaço cultural do bar L’Apero, da praia de São Marcos, em São Luís, o CD duplo “Sr. José, de Ribamar e outras praias”. Entre as cinco faixas instrumentais que integram o novo trabalho de Papete, está a composição “Era uma vez”, do virtuoso pianista cearense Eugênio Matos.
Essa história toda teve início no idealismo do publicitário e produtor cultural paulista Marcus Pereira (1930 – 1981), que teimou em documentar e divulgar a música brasileira na qualidade da sua riqueza rítmica, melódica e temática, chegando a produzir 144 discos. Pereira contou com Papete na condição de consultor, pesquisador, multi-instrumentista e intérprete no registro musical que fez da música popular do Centro Oeste e do Norte (no qual incluiu o Maranhão por afinidades estéticas e culturais), região onde “a paisagem humana se mescla com a paisagem natural”, conforme escreveu na apresentação da coleção. E foi assim que o boi da lua dançou “no planeta do Brasil”.