Um fato trágico ocorrido há 100 anos no município pernambucano de São José do Belmonte ainda repercute na vida daquele lugar, mais conhecido por ser a terra da Pedra do Reino. A cidade foi invadida por jagunços e cangaceiros que executaram por vingança um rico comerciante dentro da sua própria residência; um casarão neoclássico de cinco janelas que compõe o conjunto arquitetônico da bela e arborizada praça de Belmonte.
Esse acontecimento ganhou grande repercussão e permanece na memória coletiva do lugar e dos que se interessam pelo fenômeno nordestino do cangaço por vários dos motivos que são relatados pelo historiador belmontense Valdir José Nogueira de Moura em seu livro “Lampião e a aliança de Gonzaga” (2022), editado pelo sugestivo Centro de Estudos de História Municipal.
A história é contada como se estivesse acontecendo agora, tão ardente é a paixão que o autor manifesta pelo tema. Valdir Nogueira trata da dor e do sofrimento renitente nas pessoas da região, decorrentes da morte do coronel Gonzaga Ferraz, em 20/10/1922, na perspectiva da história cultural e do turismo. O texto não é vingativo, apenas reforça com veemência que a tragédia foi muito além de suas causas.
A posição de valores de Valdir Nogueira é clara. Para ele, Gonzaga Ferraz representava o fluxo de desenvolvimento que trouxera para a região, e o bando de Lampião interrompeu aquele impulso de progresso levando o benfeitor à sepultura, condições essas que não permitiriam outros critérios de interpretação.
Tudo é contado de forma múltipla. A voz que conduz o enredo vai compartilhando vários pontos de vista na ampla e criteriosa pesquisa que deu origem ao trabalho. A leitora e o leitor podem escutar outros historiadores, depoimentos de fontes primárias, cordelistas, descendentes de envolvidos no evento, documentos oficiais e a repercussão da imprensa, como se estivesse em uma ágora sertaneza.
Gonzaga Ferraz chegou a Belmonte na corrida pela borracha de maniçoba, produto que à época, segundo Valdir Nogueira, estava mais valorizado do que o café e a cana-de-açúcar. Construiu fortuna como hábil negociante, fazendeiro, dono de engenho de rapadura, de alambique e de fábrica de descaroçamento de algodão, além de contribuir em questões sanitárias, educacionais, de comunicação (telégrafo) e caritativas.
Passou a ser chamado de “pai dos pobres”, e isso foi percebido pelas oligarquias como uma ameaça. A polarização entre os clãs Pereira e Carvalho impedia que surgissem novas lideranças em Belmonte. Valdir Nogueira expõe com detalhes e curiosidades atraentes tudo o que envolve a brutalidade traumática que abalou o esquema violento, mas estável, das brigas entre os conservadores (Pereira) e os liberais (Carvalho) e seus vínculos com o cangaço.
O autor disseca esse que foi o primeiro grande acontecimento envolvendo Lampião, (Virgulino Ferreira), então um jovem de 24 anos, que havia assumido há pouco tempo o comando do bando de Sinhô Pereira, que largara o cangaço obedecendo a conselhos do Padre Cícero. O recorte adotado por Valdir Nogueira não se detém em contradições fundiárias, bélicas ou formas de subordinação; sua narrativa mantém o princípio tradicional de que as ameaças sociais vêm sempre da parte dos que não são coronéis.
Ao fim e ao cabo, Lampião participa daquela irrupção a serviço de Crispim Pereira (Ioiô Maroto), que, depois do assassinato de Gonzaga Ferraz, passa a morar em Cachoeirinha, distrito de Tauá, onde hoje é Parambu, valendo-se do intercâmbio que existia entre os clãs Pereira do Pajeú e Feitosa dos Inhamuns. A semiose da trama é muito vasta e, com um pouco de analogia de espanto, pode chegar aos dias atuais.