Bem comum – As crianças sem-rua
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 142 (Editora Riso), p. 20
Edição de janeiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O tédio gerado pela sensação de inutilidade é um excelente preparador de desequilíbrios sociais. Na busca por emoções que quebrem a monotonia e restabeleçam as nossas pulsões vitais, somos capazes de encontrar forças explosivas inimagináveis. Tenho observado o crescimento desse efeito no comportamento de pessoas que na infância não tiveram acesso aos espaços públicos de convivência entre as mais diferentes camadas sociais.

Os sem-rua tornam-se cada vez mais racionais, mais calculistas, mais técnicos e mais frios no desprezo que revelam em relação ao bem comum. Sentem-se poderosos, mas vivem assustados por não saberem exatamente a quem temer. Tudo o que está fora dos muros e grades que receberam como paisagem é ameaçador.

A casa dos sem-rua tem a porta para a garagem e está cercada de equipamentos de proteção. De tantas tentativas de defesa e procura por segurança, os condomínios fechados e os modernos centros comerciais viraram réplicas fragmentadas dos espaços urbanos medievais, caracterizados pelo isolamento e pela intenção de controle da circulação com o “arriscado” ambiente exterior.

Essa mania de tratarmos a realidade como se estivéssemos permanentemente sendo olhados por ela, reduz a nossa capacidade de enxergar saídas para os impasses sociais que vamos criando e alimentando com sofisticado autoengano. A voluptuosidade da exceção é fingir-se de regra, como se isso tornasse irreversível o conjunto de privilégios da nossa herança de desigualdades.

Submeter a infância a qualquer tipo de clausura não elimina a realidade que a cerca. A mentira de que a rua, os logradouros públicos e as áreas de lazer dos recantos abertos da cidade tornaram-se propriedade de quem não tem o que perder, dos seres insignificantes, induz a uma cruel iconoclastia do bem comum. As crianças sem-rua crescem com uma impressão distorcida do mundo e confundem as próprias referências.

Essa situação é um passo firme para a formação de adolescentes intolerantes, sem limites e sem senso de realidade. A infância que traz em si o espírito de cooperação naturalmente chega à adolescência com mais facilidade de ter compromisso com a vida comunitária.

Estamos formatando dois tipos quase incompatíveis de gente para o futuro: os orientados pelos encantos das infovias no ciberespaço e os educados pela adversidade das ruas. De um lado, a realidade virtual dos filhos e filhas da classe de consumo, e do outro os seres reais, a imensa maioria no planeta, com forte poder tático de sobrevivência. Duas culturas insuficientes.