Biologia do amar e do brincar
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Os olhares convergentes de um biólogo chileno e de uma psicóloga alemã, voltados à antropologia da cultura e da educação, colocam em uma mesma plataforma de reflexão as narrativas fundadas no amor e na brincadeira como inspiração para a fuga dos que querem escapar dos efeitos da cultura da guerra, da competição desmedida, do consumismo e do controle social por meio da apropriação do que possa ser a verdade.

Com análises ancoradas na biologia, Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller fazem no livro Amar e brincar – fundamentos esquecidos do humano (Palas Athena, São Paulo, 2011), uma junção de ensaios, entre o ficcional antropológico e o psicossocial, sobre o tipo de mundo em que vivemos. A obra poderia ser sintetizada na célebre frase “quem tem mãe não tem medo” do sempre querido e genial cartunista Henfil (1944 – 1988).

Adianto logo que não se trata de imputar mais uma carga de responsabilidades para cima do mito da mãe. As responsabilidades da relação materno-infantil abordadas na publicação envolvem a mãe, não como mulher, mas como um adulto em relação de cuidado com a criança. A família é entendida por Maturana e Verden-Zöller como uma unidade de convivência, integrada por adultos e crianças.

A premissa de partida dos autores é a de que todos os domínios racionais produzidos pelos humanos vêm de um fundamento emocional. O amor entra como a emoção que conduziu nossos ancestrais ao domínio das ações nas quais o outro passou a ser aceito, fazendo surgir a linguagem que nos caracteriza como humanos. O brincar, por sua vez, aparece no texto como a voz da cultura da infância em sua dinâmica também associada à origem da humanidade e às leis da vida.

Em outras palavras, o amor, como emoção, e a brincadeira, como prática não-reflexiva do exercício de ser, são modos de vida e de relação que constituem o outro, enquanto igual na sua diferença. Maturana é de opinião que, por decorrer de redes de conversações apoiadas na trajetória do emocionar, a vida humana ganha sentido e o ser social integral se forma quando infundido na aceitação e na confiança que a biologia do amar e do brincar são capazes de proporcionar.

O que eles propõem como biologia do amar e do brincar é a existência humana que acontece em um espaço relacional modelado e transformado num diálogo entre a biologia e a cultura. As crianças são parte essencial desse processo de conservação e de mudança porque na inocência da relação de corporeidade espontânea e amorosa aprendem com as “mães” o emocionar da sua cultura. O vivenciar das emoções se entrelaça com o linguajar e esse entrelaçamento foi conceituado por Maturana como “conversar”.

É no espaço relacional do conversar que configuramos o mundo enquanto vivemos. Essa condição sustenta o argumento de que a história da humanidade seguiu o curso dos desejos e não o da disponibilidade de recursos naturais. Na ótica de Maturana e Verden-Zöller, uma coisa só existe à medida que a desejamos. Neste aspecto, o que existe de mais doloroso na grave situação de esgotamento de recursos naturais renováveis do planeta é o fato de que as conversações só poderão ser mudadas se surgirem das modificações do nosso emocionar.

O autor e a autora asseguram que um dos maiores equívocos que cometemos, na tentativa de superar esse problema, é apelar para as consequências de um processo como explicação ou justificativa de sua origem. Apoiam-se ainda no entendimento de que na qualidade de seres biológicos, mesmo com cultura determinada pela predominância do masculino ou do feminino, nada acontece no fluxo emocional da vida humana por ser necessário, vantajoso ou benéfico. Esses adjetivos não passariam de meras justificativas de preferências.

Na interação corporal, na contação de histórias e nos cantos de ninar estariam chaves para a abertura da infância aos mais variados modos de emocionar. Verden-Zöller explica que, com a mãe e com outros membros da família e da comunidade, a criança desenvolve suas coordenações emocionais e se torna capaz de se orientar por meio de sua consciência corporal operacional no domínio humano de relações espaciais e temporais. Com isso, pode crescer sem medo de perder sua individualidade na integração social.

A humanidade nasceu a partir do momento em que descobriu a emoção do amor e da estética. No recorte de Maturana, a cultura ancestral que ele chama de matrística foi destruída por povos pastores patriarcais, mudando o emocional e, consequentemente, a rede de conversações. Na cultura matrística, “o pensamento humano talvez tenha sido naturalmente sistêmico, lidando com um mundo em que nada existia em si ou por si mesmo, no qual tudo era o que era em suas conexões com tudo mais” (p.46).

Nessa cultura matrística pré-patriarcal, a agressão e a competição não eram fatores definidores da maneira de as pessoas viverem, nem havia divisão de propriedade nos campos de cultivo e coleta. Para ilustrar seu modo de pensar, Maturana mexe no nosso baú de arquétipos e puxa a figura do lobo, como símbolo do inimigo nas conversações da humanidade. Diz que o lobo representa um ponto de alteração no emocionar indo-europeu (do qual descendemos em parte) quando teve restringido seu acesso às manadas das quais compartilhava o alimento com os povos pré-patriarcais.

A partir do momento em que as relações com a vida se deslocaram da confiança no equilíbrio natural para a busca ansiosa de segurança, o lobo tornou-se uma companhia indesejável, portanto, merecedor de eliminação. Vidas passaram a ser suprimidas em nome da conservação da propriedade. Maturana explica que o caçador que tira a vida de um animal que irá comer fica agradecido, ao passo que o pastor fica orgulhoso ao tirar a vida de um animal, simplesmente porque sua existência significa uma ameaça à ordem artificial (p. 55).

A principal característica da cultura matrística é a harmonia da coexistência cíclica do nascimento e da morte, numa compreensão de que todos os seres vivos e não-vivos pertencem ao mesmo reino de existências conectadas (p. 64). Na cultura patriarcal, a oscilação entre o belo e o perigoso, o fascinante e aterrorizador, define o pertencimento ao cosmo e o sentimento de uma infinita pequenez humana, levando as pessoas a se submeterem ao poder dessa totalidade, como se submetem à autoridade do patriarca (p.66)

A mudança fundamental no emocionar dessas duas situações é o surgimento da inimizade e a transformação dos instrumentos de caça em armas. A maneira como se vive com as crianças a cada tempo é a fonte e o fundamento de cada conservação ou inflexão cultural. A alteração na rede de conversações, da matrística para a patriarcal, teria sido, então, incorporada pelas crianças, conservando-se geração após geração até os dias atuais. Embora com a preponderância dos valores patriarcais, Humberto Maturana e Gerda Verden-Zöller acreditam na essência matrística.

De modo inconsciente, alerta Verden-Zöller, ensinamos nossas crianças a não amar, quando, mesmo num encontro corporal íntimo, não vivemos a vida no presente e sim no futuro, em relação ao que queremos, ou no passado, em relação ao que perdemos (p. 130), fazendo com que nosso abraço deixe de ser um abraço como ação de plena aceitação do ser específico dos filhos que se abraça (p. 141) para ser apenas um gesto imposto pelas circunstâncias.

Em Amar e Brincar deparamo-nos com o dilema contemporâneo de um emocionar contraditório que ora nos põe refém das conversações dominantes e ora nos impulsiona a assumir a brincadeira como uma das mais sérias expressões das conexões entre o ser vivo e seu meio, cujas formas atuais são apenas mutações de formas arcaicas (p. 187), responsáveis, nos movimentos da evolução da espécie humana, pelo desenvolvimento da autoconsciência, da consciência social e da consciência do mundo.