Braguinha criou a MPB infantil
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 11 de Janeiro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Ele completaria 100 anos no próximo mês de março. Nunca estudou teoria musical, nem tocou qualquer instrumento, entretanto, compôs mais de 400 músicas, boa parte delas verdadeiros clássicos da Música Plural Brasileira. Deu adeus aos fãs no final de dezembro passado. Mas Braguinha (João de Barro) está imortalizado na brasileirice da sua obra. Sucessos como “Carinhoso” (com Pixinguinha), “Copacabana”, “Chiquita Bacana”, “Touradas em Madri” e “Balancê” (com Alberto Ribeiro), “Cantores do Rádio” (com Lamartine Babo e Alberto Ribeiro), “Pastorinhas” (com Noel Rosa), “A saudade mata a gente” (com Antônio Almeida), “Pirata da perna-de-pau” e “Turma do funil”, deixados por ele, são peças de incalculável valor do nosso patrimônio cultural.
Pouco se fala, contudo, de uma parte significativa do legado de Carlos Alberto Ferreira Braga (1907 – 2006), que foi a invenção da MPB infantil. Braguinha está para a música infantil brasileira como Monteiro Lobato (1882 – 1948) está para a nossa literatura cultivada para crianças. Autor de cantigas alegres e lúdicas como “Tem gato na tuba”, de 1948 – “Todo domingo / havia banda / no coreto do jardim / E lá de longe / a gente ouvia / a tuba do Serafim” – ele tornou-se ainda um mestre da produção musical infantil, ao assumir a direção da gravadora Continental, no ano de 1943. Nessa época, fez adaptações de fábulas e contos populares e compôs cantigas de roda, que foram gravadas com arranjos e direção musical do maestro Radamés Gnattali (1906 – 1988).
A obra coletiva que Braguinha organizou para as crianças, com quase 50 títulos, ficou conhecida como Coleção Disquinho. Por volta das décadas de 1960 a 1980, essas “bolachinhas” foram produzidas em vinil colorido e fizeram grande sucesso. Material que foi remixado e relançado em CD no início da década atual. No ano passado, saiu inclusive em CD ROM, com faixas interativas. É indispensável, pela qualidade técnica e artística, e, principalmente, por ser uma obra marcada por um profundo respeito à infância. Tem “O rouxinol do imperador”, “O garoto e o burro”, “A roupa do rei”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Pinóquio” e tantos outros títulos maravilhosos. Ao musicar contos e fábulas, ele também criava e recontava histórias.
Felizmente a plataforma construída por Braguinha continua sendo honrada pelas gerações seguintes. Como não poderia deixar de ser, tem também uma porção de oportunistas entupindo o mercado de porcarias dirigidas ao “consumidor” infantil. São geralmente gravações de obras de domínio público (sobre as quais não incidem Direitos Autorais), feitas sem qualquer apuro técnico, deseducando o ouvido infantil. Esses produtores irresponsáveis se aproveitam do ser vibrante que a criança é e da desatenção de muitos pais com relação ao que adquirem para os filhos, para colocar um teclado de qualquer jeito, animando a festa do ganho fácil e desonesto. Há ainda as produções suportadas por muito dinheiro, que podem bancar qualidade técnica, mas nem sempre se preocupam com os conteúdos transmitidos às crianças.
Bom, mas entre perder tempo falando mal e ganhar tempo falando bem, prefiro o segundo caminho. Prefiro valorizar os artistas que vêm contribuindo para a tecedura da linha evolutiva da MPB infantil criada por Braguinha. Chico Buarque, que trouxe da Itália “Os Saltimbancos”, Vinícius de Moraes, que fez a festa dos bichos, com “A Arca de Noé”, e Toquinho, com o fantástico “Mundo da Criança”, asseguraram uma etapa importante dessa jornada. Nas últimas três décadas do século XX, a música infantil brasileira de qualidade foi garantida especialmente pela inquietação criadora de Bia Bedran, que desenvolveu com sinceridade autoral e interpretativa toda uma obra de cantar e contar. Bia nunca teve uma grande estrutura de produção, mas nem por isso deixou de registrar seu trabalho em discos que mais recentemente passaram a ser distribuídos de maneira mais sistemática por todo o País.
Nos anos 1980, a Funarte lançou uma coletânea de músicas da cultura popular colhidas por Villa-Lobos (1887 – 1959) e gravadas pelo coro infantil do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com arranjos do maestro Guerra Peixe (1914 – 1993). O CD do “Sítio do Picapau Amarelo”, que tem a antológica música tema composta e cantada por Gilberto Gil, é outro marco de qualidade da MPB Infantil. Na última década, surgiu de forma organizada e responsável o selo Palavra Cantada, de Sandra Peres e Paulo Tatit. Eles representam uma vertente paulistana da música infantil brasileira, com vários discos lançados e um trabalho de muito fôlego e qualidade. O CD “Brincando com palavras”, de Madan, leva qualquer criança a um passeio fascinante pelo ritmo rápido e métrica curta do poeta José Paulo Paes (1926 – 1998). Madan musicou e canta com carinho e esmero uma dúzia de poemas criativos de Paes, dando ao jogo de palavras do poeta uma sonoridade fantasiosa para estimular a meninada a se ligar nas belezas do cotidiano.
A pianista Lydia Hortélio, respeitada estudiosa do brincar, vem fazendo um trabalho magnífico de animação dos nossos temas musicais tradicionais. Primeiro fez um CD intitulado “Abra a roda, tin dô lê lê”, no qual apresenta 42 faixas de músicas para serem brincadas. Uma bela obra de recriação, que conta com a participação de crianças que não são cantoras, por isso utilizam seus timbres originais e seu jeito particular de interpretar. Com pesquisa e direção de Lydia, foi lançado também o CD “Ô, Bela Alice…”, obra encantadora com 24 temas de rodas de verso, brinquedos cantados, parlendas, cantilenas e canções de ninar, colhidos da memória de Alice Hortélio da Silva, nascida em 1906 no sertão baiano.
O CD “Cantar o mundo”, produzido pela educadora Elisa Manzano e pela terapeuta social Paula Mourão é outra grata surpresa do ano passado. São 53 faixas de canções e poesias, parte autoral e parte colhida do repertório da cultura popular nativa e pós-colonial, com linguagem musical pensada para a criança como ser social e inventivo. O professor Rubem Alves conta que estava acamado, com pneumonia e um triste céu cinzento, quando escutou o CD “Cantar o mundo” e o céu cinzento encheu-se de cores quando ele se descobriu em alegre cantarolar com as crianças.
A música infantil sempre me emocionou. Depois que meus filhos nasceram, o Lucas em 1999, e o Artur, em 2001, passei a compor uma série de cantigas para eles, que compartilho com crianças de todo o Brasil, por meio do livro “Flor de Maravilha” (Editora Cortez). Sinto-me impulsionado a contribuir com a longevidade dessa travessia fomentada pelo Braguinha. Observo a MPB infantil como uma preciosidade do nosso patrimônio imaterial. É um assunto que não deve ficar fora das discussões sobre infância, principalmente, quando a questão é criança e consumo. Quer atentos aos lobos maus, que pegam as criancinhas para fazer mingau ou cantarolando “Pela estrada afora / eu vou bem sozinha / Levar esses doces / para a vovozinha / Ela mora longe / o caminho é deserto / E o lobo mau / passeia aqui por perto / Mas à tardinha / ao sol poente / junto à mamãezinha / dormirei contente”. Viva Carlos Alberto Ferreira Braga, viva João de Barro, viva Braguinha. E viva a MPB infantil que ele criou e está se criando.