O artista plástico brincante Antônio Jader Pereira do Santos, o Dim Brinquedim, costuma dizer que para brincar não precisa de brinquedo. Na resposta que escrevi para o também artista plástico Aderson Medeiros, no meu livro Código Aberto – Autobiografia Colaborativa (Cortez Editora), citei três lembranças de brincadeiras sem brinquedo que marcaram a minha infância.

Crianças tomam banho de chuva em Independência / CE (Foto: Flávio Paiva)

BANHO DE CHUVA

Tomar banho de chuva no semiárido é uma festa, mas também uma oportunidade de falar com Deus. O céu une-se à terra em uma celebração de pingos de água benta. Tudo se transforma e se enche de frescor, na comunhão dos trovões com a gritaria das crianças pulando e correndo, como descrevi na música Festa em Independência, parceria com Tarcísio Sardinha:

“Dia de chuva, a cidade em festa / A meninada toda sai pra rua a se banhar / Uns de calção, pés descalços, outros não / Na farra da floração / Chove pra lá / Chove pra cá / Pinguinho de chuva / Vem me abraçar / Vem de montão / Boca de jacaré / Rega o meu coração / De sabor picolé…é, é, é… // E da calçada a gente pode avistar / Um belo arco-íris, vira e volta é só pintar / Felicidade num barquinho de papel / Lápis de cor dos anjos do céu / Chove pra lá / Chove pra cá”…

OUÇA FESTA EM INDEPEDÊNCIA:

Daí a minha satisfação de, assim como eu fazia quando criança, continuar tomando banho de chuva toda vez que vou ao sertão e vivencio essa sintonia divina.

CONVERSA DE BODE

Dos animais que marcaram a minha infância, os caprinos são os que mais me despertaram (e ainda despertam) atenção, pela curiosidade, astúcia, sagacidade e coragem. Brinquei com cabritos e nunca tive dúvida de que eles sabiam que estávamos brincando. Impressionava-me a habilidade com que as cabras e os bodes mais velhos abriam cancelas e porteiras, e subiam em cercas de varas trançadas. Nunca me cansei de apreciar o destemor desses adoráveis brincalhões em suas escaladas pelas encostas dos serrotes, em busca de alimento onde os demais bichos de médio porte não conseguem chegar. Os cascos dos bodes e das cabras têm dois dedos e isso facilita para que consigam se equilibrar nas andanças pelos rochedos mais íngremes. Do alto, ficam a contemplar o mundo como fazem os sábios.

Na minha convivência de criança com os caprinos, somente um comportamento deles me assustava. Era quando eu me aproximava de alguma clareira na mata e os ouvia conversando como se fossem pessoas. Aquele linguajar soava para mim como o dialeto dos bêbados, que falam sozinhos pelas ruas, em discursos ininteligíveis, acentuadamente modulados e dirigidos a ninguém. Os bodes conversam fazendo movimentos barulhentos com a língua, gemendo, dando risadas estranhas e gritando como se estivessem passando por alguma agonia. Talvez por conta dessa fraseologia bestial, “bodejar” seja um verbo intransitivo, vinculado à ação de soltar a voz. A força simbólica do caprino é tamanha que ele assina um dos círculos de latitude da Terra – Trópico de Capricórnio – e dá nome a uma constelação – Capricórnio. Para mim, é uma satisfação ter esses bichinhos como meus amigos de infância.

FAVELA SEM ESPINHOS

As plantas também tiveram muita importância em meu tempo de criança. Era comendo farofa de semente de favela que, juntamente com meus amigos, aguentávamos brincar o dia inteiro na mata branca em intermináveis lutas de cavalos e espadas feitos com talo de carnaúba. No quintal da casa onde eu nasci, em Independência, nasceu um pé de favela sem espinhos. Como espinhar-se com favela é quase tão doloroso quanto levar uma picada de marimbondo, lembro-me que nas brincadeiras de esconde-esconde eu subia em seus galhos e ninguém conseguia me achar, simplesmente porque no senso comum é impraticável enfrentar os espinhos de um faveleiro. Isso era muito divertido. Nunca entendi por que tantas favelas têm espinhos, mas sou testemunha, desde a infância, de que é possível existir favela sem espinhos.

Fonte: RIvista do Mino nº 223