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Compenetrado, o compositor Álcio Barroso senta em um banquinho e, seguindo os acordes do seu violão, o violino do filho Iago e a voz da filha Alice presenteiam a plateia com a música Artista: “Cansei de ser artista / procuro um bom emprego / bater ponto de vista / virar cabeça de prego”. A linda e cortante canção mexe com o silêncio do auditório do IFCE, em Itapipoca, na noite da sexta-feira (17) passada. Não parece ter nexo a renúncia manifesta na letra e a expressão de satisfação dos três no palco.

Fosse uma cena de histórias em quadrinhos, os balões sobre as cabeças do público estariam cheios de pontos de exclamação. Mas era um show, uma participação especial de Álcio como “convidado invocado” do projeto de circulação e debate do livro-CD “Invocado – um jeito brasileiro de ser musical” (Armazém da Cultura), de minha autoria, com ilustrações musicais interpretadas pela banda Dona Zefinha. E o que ele oferecia era um dualismo entre circunstâncias reais e estados desejantes.

O jogo da dupla face, em que aparecem o semelhante e o estranho rejeitando e querendo a si mesmo, é surpreendente nessa peça musical. “Eu canto pra sulista / em língua nordestina (…) Fantoche de revista / fetiche de novela (…) um risco na agenda / e eu rasgo a rotina (…) Eu faço faxina / eu caço na esquina / eu passo petiscos na mão”. O desamparo das incertezas convive com a necessidade de proteção e acolhimento do ser em ato conflituoso entre a desadaptação radical da arte e a pressão da energia criativa em ebulição.

Na década de 1980, o Álcio Barroso, então estudante de Psicologia na UFC, chamava a atenção pela irreverência e qualidade de suas composições. Depois sumiu. “Matei meu analista / nas curvas desta tarde / com luva de pelica / maquiavélica liberdade”. Foi trabalhar com outras atividades no interior. “Serei os seus olhos, ouvidos e boca / ou outra servil profissão (…) Só não mais ser artista / eu quero é ter dinheiro / trabalho na cozinha, camarinha / ou no banheiro”, diz em sua irônica desistência.

Por descarregar excitações endógenas em busca do restabelecimento do equilíbrio, esta música reaproxima o artista da experiência de satisfação de ser publicamente o que é, o que nunca deixou de ser. A singularidade desta obra de Álcio Barroso está na nua explicitação da rejeição do autor ao que deseja. É uma composição de grande força existencial, uma pulsão que toca o drama geral do consumismo e suas líquidas dívidas emocionais, sem pedir desculpas para dizer sarcasticamente que está cansado dos que o cansam.

“Não tenho mais idade / nem personalidade (…) porém, com um bom salário / faço parte do cenário / Já vou tarde / e passo bem”, diz o compositor na última estrofe de Artista. O melhor de tudo é que em seu tempo de recolhimento dos palcos, Álcio Barroso pode até ter se cansado de ser artista, mas não se cansou da música, e seguiu aberto para o mundo e não apenas para os ambientes onde a arte tem pouco valor.

A apresentação no espetáculo “Invocado que só!”, ao lado da filha e do filho, revela o tanto que ele não perdeu da cumplicidade com a educação estética, com o prazer da gratuidade do belo, sua relação inversa com o simples conceito de uso e sua presença no sentir e no sentido da vida. Ao afirmar que cansou de ser artista, Álcio Barroso aciona um duplo movimento pelo qual a arte e o artista surgem simultaneamente na subjetividade dos sentimentos e na objetividade das sensações. Invocado!