Phantima é um bebê muito amado, que veio ao mundo enquanto a mãe, a cantora moçambicana Lenna Bahule, se preparava para lançar o resultado da pesquisa que fez com músicas infantis cultivadas pela oralidade transgeracional no seu país. O nascimento do filho impulsionou o compartilhamento de “Memórias Daqui (Cantigas e outros sons)”, álbum com 36’47” de cantigas de brincar, entremeadas por contos populares, que acaba de ser disponibilizado pela artista no Spotify, Deezer e em outras plataformas de streaming.
Com envolvente repertório de ares percussivos e fônicos, o disco transmite a vibração das cantigas que tocam brincadeiras liberando a energia e a espontaneidade do espírito infantil em movimentos corporais, de audição e de canto. Imagens, figuras, temas e símbolos de meninice dão o tom da diversão por meio de vozes participativas e gestos ritmados, em tempo familiar de afetividade e integração no jogo da criança com o adulto e de criança com criança.
Todas as cantigas de “Memórias Daqui” são de domínio público, com arranjos, criação de vozes e acréscimo de palavras feitos por Lenna Bahule. Em um trecho de “Mbhalele Mbhalele / A Matwe Twe” ela desenvolveu uma canção exclusiva com linda melodia, harmonia e técnica vocal inspiradas nesse jogo de perguntas e respostas. Ao longo do álbum a musicista trabalha com o conceito de cantar brincando, de brincar junto em uma proximidade que se dá em sequência lúdica.
A produção de sons, a marcação do ritmo, a reverberação das palavras, o balançar do corpo, a brincadeira de girar e o desafio de completar algo iniciado pelo outro são recursos da cantiga-ação em “Memórias Daqui”. Mas a qualidade expressiva dessa obra infantil não está somente na agitação; ele traz também “Malaia Bebe”, uma cantiga de ninar interpretada por Cheny Wa Gune, artista nascido na capital Maputo, como Lenna, que toca ainda um suave timbila, espécie de xilofone do povo chopes sul-moçambicano.
Nesse trabalho de valorização da infância a cantora incluiu três fábulas comuns nos livros escolares moçambicanos. “A lagarta e o sapo”, que fala do risco de não aceitar um bom conselho, “Casamento dos bichos”, em que a festa termina quando o leão pergunta o que tem para comer, e “Os animais”, uma alegoria sobre instintos e habilidades. Todas lindamente narradas pela Katiúscia, prima de Lenna Bahule.
Na combinação das cantigas “A xitikinha / Hi Tlhanguela Xinwanana”, o cantar inicial tem cadência de sussurro em seu jeito cheio de orgulho de ver a menina que “está grandinha e já vai à escola”, e termina com uma adaptação moçambicana de “Parabéns pra você”, muito semelhante à que se canta no Brasil. O português, a língua oficial em Moçambique, aparece em “Memórias Daqui” misturado com changane, chope, jaua, emacua, sena, bitonga e xitswa, que são idiomas locais.
Muitas cantigas coloniais foram sincretizadas em Moçambique, como aconteceu no Brasil e em outros territórios que passaram por domínio europeu. No pot-pourri “Mamana Rosita / Lamudjika / Latoleta”, depois de uma dança de ‘capulana’ (pano em forma de saia) e de uma farra de vozes e tambores, tem-se um exemplo desse ponto de fusão vocabular. “Latoleta” é a mesma “Andoletá”, brincadeira que, com reprodução prosódica em consonância de sílabas com palmas, é normalmente cantada e jogada em dupla ou em grupo: “A-do-le-tá, le peti peti polá, le café com chocolá”. E por aí vai.