Canto e dança de Fanta Konatê
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 06 de agosto de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Em um pequeno estúdio para ensaios, localizado no Brooklin paulistano, conheci a cantora, compositora e dançarina guineana Fanta Konatê. Simpática, leve e intensa, naquela agradável noite fria ela passava com sua banda o repertório do show que fará nos próximos dias 8 a 10, no Sesc Bom Retiro, tendo como convidados a cantora paulistana Fabiana Cozza, o compositor maranhense Tião Carvalho e o guitarrista carioca André Sampaio.

O grupo, dirigido pelo percussionista Luis Kinugawa, acompanhava Fanta em diálogos de timbragem e de rítmica, entre tambores ancestrais do oeste africano e instrumentos mais recentes da música mundial, como guitarra e sax. Em um monitor ao fundo, pude ver um pouco da simbiose de imagens africanas e brasileiras que serão projetadas durante o espetáculo, entre detalhes de silhuetas e cores, ao estilo Kiriku, de Michel Ocelot, diretor franco-argelino que passou a infância na Guiné.

A música de Fanta Konatê tem uma força vital impressionante em sua radicalidade humana. Com sotaque da cultura mandinga, ela ressoa a musicalidade profunda do Império do Mali, experiência social, política e religiosa sempre associada à figura sensível e guerreira do lendário Sundiata Keïta (1217 – 1255). Seu som expressa tradição e contemporaneidade, com pulsações e sentimentos de uma das regiões mais férteis do mundo em termos de arte musical.

Não é necessário muito esforço para perceber que foi do manancial artístico do oeste africano que brotaram grandes artistas – do desertblues ao afropop –, a exemplo de Ali Farka Touré (1939 – 2006), Youssou N’Dour, Alpha Blondy, Fela Kuti, Salif Keïta e a dupla Amadou e Mariam. Essa gente toda nasceu na zona de influência malinesa, que, além do próprio Mali, abrange Senegal, Gâmbia, Nigéria, Costa do Marfim, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Libéria e Brukina Faso.

O veemente caráter comunitário manifestado na arte de Fanta Konatê vem de uma prática social marcada pela presença ativa da música em todas as festividades, como um meio de comunicação que estimula o contato entre as pessoas e, destas, com a sua consciência mística. Neste aspecto, há muita semelhança com a integralidade da música, como parte dos afazeres diários na formação da cultura nordestina brasileira.

Os brincantes da nossa cultura popular, quer seja em momento de trabalho, de compromisso social ou de simples diversão, guardam traços comuns com a cultura dos grupos malineses à medida que não separam palco de plateia em suas cantigas de campo, canto de trabalho, cirandas, rodas de coco e outras demonstrações de espírito coletivo em festa. Isso faz com que a beleza da interpretação de Fanta Konatê esteja mais para o encanto da cirandeira pernambucana Lia de Itamaracá do que para as vozes finas das divas da música de massa.

Embora há onze anos morando no Brasil, tempo que tem de casada com o percussionista e produtor Luís Kinugawa, com quem tem um filho de oito anos, o Rodrigo – que também estava no estúdio batucando –, Fanta mantém vínculos constantes com a sua família na Guiné-Conacri. Seu pai, Famoudou Konatê, é um dos mais conhecidos e reconhecidos mestres africanos de djembé, antigo tambor de madeira, em forma de taça, com couro de cabra tensionado, que permite um som limpo e incisivo, com variadas nuances entre graves e agudos.

O djembé, como instrumento originário da arte tradicional mandinga, em sua extensão guineana, compõe o universo simbólico e imaginário de Fanta Konatê, da sua família e da aldeia onde nasceu. A voz, a dança, a sonoridade, a agitação e as cores da sua música revelam-se facilmente impregnadas ao trabalho dessa artista em sua completude e consistência. Por meio do Instituto África Viva, entidade da qual é fundadora, Fanta tem promovido a aproximação da arte e da cultura do oeste africano com o Brasil.

Esse tipo de movimentação, exercitado por Fanta Konatê, contribui para o processo contínuo de renovação dos elementos rítmicos, temáticos, de gênero e estilo da música brasileira. A riqueza do que temos hoje é consequência de uma concepção de diversidade e de pluralidade que vem fluindo desde que Alberto Nepomuceno (1864 – 1920) levou para os palcos das salas de concerto os sons que as pessoas produziam nas ruas. Em 1887, quando ele compôs “Dança de Negros (Batuque)”, a partir dos toques e movimentos dos tambores da cultura afro-brasileira, foi amplamente criticado por levar a “selvageria” ao lugar da música.

Em que pesem as limitações que teve e que tem de superar, o Brasil seguiu e segue o seu destino de sociedade miscigenada e aberta, possibilitando que brincantes, músicos, dançarinos e espectadores existam como parte da vida comunitária em sua dimensão social mais plena. Ao ver e ouvir a combinação de música tradicional e contemporânea, feita por Fanta Konatê, à base de vivências, profundidade ancestral, pressupostos poéticos, lendas e jeito vibrante de ser dos povos formados por grupos étnicos estabelecidos às margens dos rios Senegal e Níger, reforcei em mim a convicção da música como uma linguagem de alcance divino, na medida em que se acredita nela.