Caprinocultura no campo digital
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 29 de abril de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Nos últimos anos tem havido um crescimento do interesse pela figura do bode na internet, tanto em games, páginas de humor, vídeos avulsos e noticiário. A rede mundial de computadores mostra-se como campo fértil de postagens e pastagens para a criação de bode digital. Com seus múltiplos significados e trejeitos de criatura invocada, teimosa, altiva e equilibrista, a figura caprina circula pelas veredas cibernéticas, escalando montes virtuais.

Os avanços na produção de games com personagens caprinos sinalizam que a simbologia do bode tem grande potencial na nova economia. O Goat Simulator, desenvolvido pela empresa sueca Coffee Stain Studios, para jogar em computador, ainda tem roteiro bem simplório, com um bode que sai destruindo tudo o que encontra pela frente, mas já obteve um grande sucesso, com vendas por meio de lojas virtuais.

Nessa mesma linha de diversão eletrônica, embora com característica bem mais lúdica, encontramos o Escape Goat, um tipo puzzle eletrônico, com dezenas de salas de quebra-cabeça e armadilhas, desenvolvido pela estadunidense Magical Time Bean, no qual uma cabra, presa por feitiçaria, tenta fugir da prisão, saltando e desviando-se de blocos em movimento. O próprio nome da empresa, com sua alusão a um tempo mágico dos feijões, leva essa plataforma digital ao contexto rural das fábulas.

O pernambucano Bode Gaiato, versão caprina do cearense Suricate Seboso, também mantém página na praça de relacionamentos da multinacional Facebook, com montagens singelas e engraçadas de personagens que são bodes e cabras, em situações caricatas e linguajar regionalizado. Diferentemente do Suricate, que, espirituosamente, lança mão dos gestos cômicos universais de um mamífero africano, que fica em pé como gente, o Gaiato parte do lugar do bode na cultura nordestina.

A pecuária digital do bode conta com um vasto campo a ser cultivado pelo espírito criativo cearense no semiárido da nossa vida cultural e sua escassez de estratégias abertas ao desenvolvimento com base nas fontes renováveis da criatividade. Na terra do humor, personagens como o Bode Ioiô constituem conteúdos intrínsecos, capazes de sintetizar uma grande quantidade da energia do que somos, enquanto sociedade reconhecida pela resistência e pelas danações inventivas, o que deveria apurar mais a nossa atenção ao toque desse chocalho onde está codificada uma das chaves da nossa autoexpressão.

Sempre admirei bodes e cabras. Fui criado com eles, brincando com cabritos e ouvindo as arruaças e os falatórios dos adultos nas capoeiras. O caprino é um animal muito inteligente, que não hesita em se arriscar, que sobe serras e enfrenta precipícios na busca de sua alimentação. É um bicho que gosta de contemplar, que, do alto das montanhas, costuma observar a vastidão do mundo. Com a força alegórica e de sabedoria que tem no nosso sistema de representações, o bode deveria ser um ativador nato da nossa produção de games, aplicativos, vídeos e cinema.

A intensificação das experiências vitais da nossa relação com os caprinos, na sua extensão do leite, da carne, do couro, dos artefatos de chifre, do pictural e dos causos, é um potencial de grande importância à liga cultural, ao mercado do turismo e aos negócios da nova economia. São muitas e diversas as maneiras de abordar, trabalhar, formular e reformular a dimensão supra individual das virtudes do bode, presentes no nosso imaginário.

O bode e a cabra fazem parte de um campo simbólico fértil, culturalmente lavrado na terra, ora seca e ora úmida, do nosso inconsciente coletivo. O leite e a carne de cabra foram os primeiros alimentos humanos produzidos a partir da domesticação de animais. A figura do bode já estava presente em sacrifícios esotéricos primitivos, no obscurantismo medieval, na mitologia grega e na tradição egípcia. O pai-de-chiqueiro tem odor hormonal forte, associado à libido, e a aparência do bicho com chifres, barba e pata fendida, foi associada a espírito luxuriante e demoníaco.

No zodíaco, nos mapas astrais, o signo de Capricórnio, com a figura de uma cabra escalando uma montanha, está vinculado à determinação e à atração por desafios. A cabra com rabo de peixe, que deu origem ao décimo signo do zodíaco, é um animal híbrido, que faz a ligação entre o fundo do mar e o céu, desenhando a trajetória evolutiva dos seres marinhos mais remotos à transcendência. Animal solar, o bode é a imagem desse signo que abre o calendário do verão no hemisfério sul, onde estamos geograficamente localizados.

Há figuras que são mais fortes do que outras, e por ser uma destas, a do bode deveria estar em nossa consciência focal. A sua eventual escolha como elemento de realce cultural contribuiria para ampliar nossos indicadores de potência interna e externa nos mundos físico, virtual, digital e na economia de conteúdos. O Ceará tem tudo para escapar dos convencionalismos do crescimento retardado, mas, para isso, precisamos, como a cabra do Escape Goat, fugir das armadilhas que nos imobilizam quando continuamos a empregar dinheiro público apenas em duvidosas edificações.