A Carta em defesa do Estado Democrático de Direito, assinada por significativa parte da sociedade civil brasileira que rejeita as movimentações de natureza totalitária do atual presidente da República, lida publicamente no último dia 11 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e em outros lugares do País, é urgente e tem destino comum.
Essa manifestação traz em sua essência uma proposta de entendimento conceitual e desejável dos valores democráticos, integrando sem discriminação visões liberais clássicas, compensatórias e interseccionais, ante a politização da ilusão e da vida moral. Representa a dimensão prática da força da sociedade organizada em seu despertar para fazer valer a dinâmica das diferenças em um cenário de injustiças representativas.
Com essa carta, a sociedade civil, enquanto instância permanente da vida social e política brasileira, assume a responsabilidade de combater o golpismo, ao tempo em que revela inspiradores sinais de independência, em um país marcado pelo espírito da servidão. Dos mais beneficiados com a concentração da riqueza às pessoas mais vulneráveis, há no Brasil o vício de que ser educado é agradar a quem manda.
No artigo “A democracia empírica” (Vida&Arte, 30/09/2003), reflito sobre o quanto a educação brasileira é displicente na nossa preparação para a democracia. Historicamente as lideranças que controlam os poderes republicanos não entendem ou fingem não entender que é a cultura que orienta os sentimentos mais profundos de uma sociedade. Daí os permanentes ataques ou tentativas de controle das manifestações culturais.
Quanto mais impaciente for um povo para a geração de consensos, mais a política das segregações avança, favorecendo o poder de quem aposta na intriga, nos nichos e na ação dos disseminadores de desconfiança. Há duas décadas, quando me dei conta do nosso empirismo democrático, percebi que os quereres lógicos e psicológicos da brasilidade desenvolveram uma sensibilidade democrática pela periferia da nossa consciência.
16Vez por outra, essa sensibilidade perdida entre os contrastes da abundância e da escassez vem à tona em forma de alerta racional. É o caso louvável da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!”, tanto em sua versão de 1977, quando fez frente à ilegitimidade do governo militar e ao estado de exceção, como a deste ano de 2022, que dá um basta nas manobras golpistas centradas nas tentativas de erosão do sistema eleitoral e de condenação das urnas eletrônicas.
O antidemocratismo instalado no Brasil parece ter dois grandes impulsionadores: o fato de governos terem assumido a agenda moral da sociedade como agenda de Estado e de as elites conservadoras terem encontrado um aventureiro sinistro, violento e multifóbico para fazer o trabalho sujo de promoção da descontinuidade do modelo de governança voltado para a justiça social.
Entre raros estadistas e muitos populistas, o povo acaba confundindo as instituições democráticas com os seus ocupantes. Deste modo, o desprezo às estruturas constitucionais republicanas passa à margem da vida pública, movido por duas carências pouco democráticas: uma paternal, no sentido de provedor, e outra maternal, no sentido de cuidador. É nesse cenário que a Carta pela Democracia chega para possibilitar um propósito de troca entre verdades, como algo muito mais importante do que ser dono de qualquer delas.