Casa de Francisca
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 09 de setembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Na cidade de São Paulo existe um lugar voltado exclusivamente para a realização de projetos musicais considerados de relevante comprometimento artístico, a Casa de Francisca. Em um paralelo com Fortaleza, eu diria que é algo parecido com o Mambembe, um pouco maior e mais bem definido como casa de espetáculo, mas igualmente com boa música e saborosas comidinhas de boteco.

Todos querem fazer show lá porque, além da distinção artística do convite e do aconchego do lugar, o serviço é suspenso na hora da apresentação e as pessoas param para ver/ouvir com atenção e respeito. O formato e a dinâmica lembram bem o projeto Sexta com Arte, que realizamos em 1996 e 1997 no Sindicato dos Jornalistas do Ceará, na gestão do Moacir Maia.

No momento, a Casa de Francisca está sendo preparada para mudar de bairro, vai sair do Jardim Paulista para o Centro da cidade. Passará a funcionar em um prédio tombado, um palacete de 1910 (mesma data de fundação do Theatro José de Alencar), que já abrigou escritórios da editora Irmãos Vitale e estúdios da Rádio Record, e onde funciona a Casa Amadeus Musical.

O novo endereço vai ampliar o número de lugares de quarenta para cento e tantos, ou seja, vai crescer sem perder o charme. A reforma está sendo feita com recursos dos próprios herdeiros. Em entrevista à Ilustrada (FSP, C4, 14/08), um dos fundadores, Rubens Amatto, conta que foi fácil negociar porque a proprietária é frequentadora da Casa de Francisca e gosta de música.

Isso me anima muito, pois soma na percepção de que nem tudo está perdido quando a questão é valor artístico no Brasil. Dois pontos desse conto merecem realce especial por seu simbolismo social: 1) a família dona do palacete está tirando dinheiro do bolso para a recuperação de um prédio histórico, quando o ordinário seria apelar para recursos públicos; 2) a bisneta do construtor frequenta um espaço alternativo de significância musical, coisa pouco comum nesse meio.

A lembrança desses dois pontos perturbadoramente positivos não sai da minha cabeça. Vira e mexe e me vem um desejo de que algo assim pudesse acontecer como parte de um traço cultural fortalezense. Enquanto, por um lado, tento rejeitar esse discurso interno, dizendo a mim mesmo que esse é um aspecto incontornável da nossa falha de nexo social, por outro lado, fico alimentando a expectativa de que isso ainda possa mudar.

Tento me poupar da vontade de superação dessa forma particular de tragédia em nossa cidade tão destituída de ofertas artísticas à altura do seu potencial cultural. Fico pensando nisso como se estivesse ao lado de Estragon e Vladimir, os emblemáticos personagens do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989), na espera de alguém que não teria ficado de vir.

Nessa invasão de realidade pela ficção, como em um estado de cisão existencial, escuto a voz do personagem que fica sempre na expectativa de encontrar algo que sinalize para a impressão de que estamos vivos, e ouço também os argumentos daquele que segue firme na espera de que o propósito não seja esquecido. “Então vamos?”, pergunta um; “Vamos”, responde o outro; mas não se movem.