A maneira com que vemos o mundo é determinante de nossas atitudes. Em Nova Olinda, a mais de 500 km de Fortaleza, a experiência coletiva de assimilação do próprio olhar, proporcionada pela Fundação Casa Grande, vem transformando há 25 anos aquela cidade do Cariri. Ali, crianças e jovens descobriram que viver dá trabalho, mas pode ser divertido e edificante.
Por ser fruto prático da crença de que todo lugar é potente, a cumplicidade social integrada desenvolvida na Casa Grande torna-se muitas vezes alvo de impressões externas que chegam com parâmetros, anseios, preconceitos e vontade de enquadramento do que escapa das teorias. E isso exige um esforço constante de aprendizado no relacionamento com essas projeções.
O primeiro impacto para quem apenas escutou falar da Casa Grande está no próprio nome da fundação, que, sem um filtro ressignificador, pode parecer senhorial, coisa de latifundiário. Mas o maior choque demonstrado pelos que têm uma visão estereotipada da infância se dá quando essas pessoas veem trabalho infantil no compartilhamento das atividades de manutenção e dinamização da Casa.
O que a Casa Grande de Nova Olinda de fato tem feito é desconstruir a lógica de poder econômico, político e social que estava na casa sede dos engenhos e das fazendas do Brasil colonial, criando oportunidades inventivas a partir da gestão compartilhada, do senso de pertencimento e da economia solidária, com a participação ativa de crianças. Tudo isso passando pela força ancestral do povo Kariri e pelos hábitos mentais dos territórios em movimento advindos do ciclo do couro.
No entanto, a exemplaridade dessa iniciativa pedia uma trama fundante, capaz de colocar à disposição do visitante uma narrativa definidora da imagem que os integrantes da Casa têm de si mesmos.
A referência básica desse enredo agora está contextualizada em uma argumentação científica que oferece um lugar de fala histórico, pré-histórico e cosmogônico como plataforma dessa experiência.
A publicação do livro Arqueologia Social Inclusiva – A Fundação Casa Grande e a Gestão do Patrimônio Cultural da Chapada do Araripe (Expressão, 2017), com a tese de doutoramento de Rosiane Limaverde (1964 – 2017), traz o olhar de quem é parte significativa dessa experiência exitosa de cidadania orgânica. A mistura de taipa, adobe e tijolo daquela edificação centenária recebe no olhar da autora o sentido de composto indígena, caboclo e português como marco transformador pela noção de pertencimento.
O recorte arqueológico do trabalho de Rosiane leva ao espírito do lugar e contribui para a tradução da Casa das Crianças como espaço onde moram a memória e a história do povo Kariri. Na Casa Azul crianças e jovens cultivam, como dever existencial e prazer lúdico, contos, lendas e mitos da região, e cuidam afetuosamente de um acervo formado por artefatos líticos, cerâmicas, santeria e objetos da cultura popular.
Rosiane revela em sua tese que, ao se tornar um patrimônio que pertence a vários tempos, a Casa Grande mostra qualquer coisa que não é apenas uma casa. Ao abrigar e transmitir às crianças – e por meio delas mesmas – os encantamentos do lugar onde vivem, em horizontes para trás e para frente, a Casa tece o presente inspirada na vigorosa combinação de ancestralidade com sentido comunitário de destino.