Cássia éller e o Código Civil
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10
Domingo, 20 de Janeiro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A luta contra a dependência de cocaína vinha causando reações hostis e de auto-flagelo em Cássia Eller. O que, contudo, teria tornado a sua vida mais insuportável seria o descompasso entre a pulsão do seu espírito underground e os efeitos do jogo mercantil nutridos pelo sucesso compulsório. Ela não conseguia se ver como alguém que “só servia para ganhar dinheiro”, conforme depoimento prestado à polícia do Rio de Janeiro por sua companheira Maria Eugênia, com quem viveu ao longo de 14 anos. Por ironia da tragédia, os gráficos de vendas da indústria fonográfica constumam saltar em circunstâncias de homenagens póstumas.
Cássia Eller inscreveu, com honestidade artística, a sua marca nos compêndios da música plural brasileira, para a qual deixa uma obra bastante considerada pela crítica e pelo público. Foi expressiva também em suas atitudes como pessoa e, nesse momento que o novo Código Civil acaba de ser sancionado, a força da sua personalidade incita a provocação da discussão sobre as leis que regulam as nossas relações sociais. Mais que isso, estimula a tomada de decisões fora do lugar-comum, tal qual a sentença do juiz que, bem utilizando a discricionariedade, concedeu a guarda provisória do seu filho Chicão, de 8 anos, à companheira da cantora. Este fato cria jurisprudência e impulsiona o debate de ajuste das leis a respeito de tantas questões centrais do dia-a-dia da população.
Até janeiro de 2003 a nova legislação pode receber sugestões e alterações que serão votadas pelo Congresso. Por princípio constitucional o Código Civil se esquiva de itens polêmicos do tipo “relação estável entre homossexuais”. Mais mobilizador seria se a abrangência da inclusão fosse expandida, envolvendo outras ocorrências que carecem de registro da parceria civil. As demandas da sociedade familiar não podem mais ser reduzidas ao contrato entre marido e mulher. A união civil requer critérios que atendam à realidade atual, independente de como ocorrem as cerimônias casamenteiras, os rituais de ligação e os procedimentos simbólicos da aliança entre as pessoas.
O matrimônio como passaporte para o acasalamento há muito perdeu o sentido. É coisa do tempo que linhagem, laços sangüíneos, raça e, principalmente o interesse político e econômico, determinavam a maior parte dos contratos sociais e sexuais. As pessoas já não devem mais ser obrigadas a se suportarem por motivos distantes do amor, do aconchego, da cumplicidade e das afinidades na crença da vida. Sem negar o caráter tradicional da chamada célula mater da sociedade, a nova família é escolhida por razões menos naturais e mais culturais.
A situação que a perplexidade da morte de Cássia Eller desafia mostra que a busca por novas permissões e limites das organizações familiares e assemelhadas não pode mais ser adiada. Em casos como o do menino Francisco, o espírito da lei chama a atenção para o que convencionalmente tem-se escrito como ”superior interesse da criança”. Neste campo, o vínculo afetivo é um fator tão ou mais preponderante do que as condições econômicas e a capacidade do tutor na promoção da formação da criança. Maria Eugênia é para todos esses efeitos a “viúva” da cantora, portanto, mãe do Chicão.
A discriminação brasileira é estrutural. Na hora de uma desgraça dessas, afloram todos os tipos de intolerância. Uns marginalizam a cantora acusando-a simplesmente por ser roqueira, homossexual e ter morrido por suspeita de overdose; outros ignoram as manifestações do seu pai por ele ser sargento reformado do exército, separado da mãe e ter reclamado participação na herança. Constrangimentos assim, bem que poderiam ser evitados, caso a lei permitisse o livre arbítrio de vínculo civil entre os seres humanos, com as devidas opções de comunhão parcial e universal de bens. Desta forma, o desenlace de casos como esse seria bem mais tranqüilo, evitando a exibição pública desnecessária da intimidade das pessoas. Pelo menos a exposição de Cássia Eller tende a concorrer para a elucidação desse emaranhado de demandas e para a criação de mecanismos legais em favor da solução de problemas semelhantes.
Além da questão do sexo, é fácil observar um bom número de situações com incômodos gerados pela ausência de instrumento jurídico capaz de regular o dia-a-dia e de proteger o patrimônio construído em diversas relações cotidianas que não se enquadram no casamento tradicional: pessoas que vivem juntas por razões econômicas, de afinidade intelectual, mística e cultural, de afetividade etária, de proteção mútua, de saúde, de adoção ou mesmo que seja simplesmente para ter com quem dividir solidão. O certo é que o cônjuge informal não tem sossego nem na hora da morte. A partilha é sempre um deus-nos-acuda. O grito dramático da querida Cássia Eller serviu para excitar o debate pela paz dessas pessoas.