A pior de todas as crises é a falta de perspectiva. Seja qual for a circunstância, o que nos faz suportar a mais dura realidade é ter algo a conquistar depois que as dificuldades passarem. E quem tem esse sentimento, quem consegue não perder o horizonte interior diante da desesperança, sempre encontra uma forma de fazer o que pode no sentido do que almeja alcançar.
Isso me traz à lembrança a saga da escritora Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), a catadora de papel que há 60 anos surpreendeu o Brasil com suas notas e reflexões sobre o cotidiano da favela do Canindé, em São Paulo, onde morava. Neta de escravos, nascida na cidade mineira de Sacramento e semianalfabeta, ela encontrou motivo existencial na vontade de publicar um livro no qual pudesse mostrar ao mundo as condições de vida na favela.
A despeito de morar com três filhos em um barraco, lançou mão do minguado dinheiro que ganhava, catando papel e lavando roupa, para enviar os originais à Reader’s Digest, nos Estados Unidos, mas eles foram devolvidos. Ao retirá-los nos Correios “estava com vontade de queimar os cadernos”, registrou. Carolina aprendeu a escrever lendo livros e jornais encontrados no lixo.
Como se fazer isso já não fosse uma tarefa difícil, ela ainda sofria diversas pressões para desistir. Em seus relatos, conta que ao dizer que estava escrevendo um livro realista era advertida de que não é aconselhável “escrever a realidade”. Por outro lado, quando era atacada por alguém, reagia ameaçando o agressor de contar tudo no livro, e assim evitava de muitas vezes ser importunada.
Descoberta pelo jornalista alagoano Audálio Dantas, Carolina teve seus diários transformados no livro Quarto de Despejo (1960), obra que foi traduzida e editada em várias línguas e países. O sucesso dessa obra foi tanto que ela gravou ainda um disco com o mesmo nome do livro, no qual canta sambas, baiões e valsas de sua autoria. Dizia que para suportar aquelas condições precisava criar um ambiente de fantasia, fingindo muitas vezes que tudo não passava de um sonho.
Tinha ojeriza a bebida. Presenciou e descreveu muitas brigas e perturbações causadas por bebedeira. Confessou o quanto foi impossível arranjar um marido que não fosse pinguço e que pudesse entender uma mulher que se levantava à noite para escrever. Ademais, receava que o álcool tirasse o respeito que tinha por parte dos filhos.
Quando recebia reclamações de vizinhos por alguma danação das crias, argumentava que, mais do que encontrar defeito nas crianças, procurava era dirigir-lhes palavras agradáveis. “Preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não têm ninguém no mundo a não ser eu”, escreveu. Reconheceu seus momentos de revolta contra o peso do saco de papel na cabeça e dos meninos nos braços, mas afirma que se acalmava quando pensava que eles não tinham culpa de estar no mundo.
Carolina Maria de Jesus se sentia um objeto fora de uso. Criticava a mania do povo de gostar de receber esmolas. Falava mal dos políticos que só visitavam o “quarto de despejo” nos períodos eleitorais e declarava o voto àqueles que construíam obras que beneficiavam a coletividade. Ela tinha um rumo, um querer, e é isso que a sociedade brasileira precisa para reunir forças para o enfrentamento das dificuldades que estão postas na atual conjuntura.