Catarse literomusical criativa
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 11 de Outubro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A vida de um compositor que teima em viver de trabalhos autorais passa por uma existencial oposição recíproca entre as perspectivas oportunizadas pelas novas tecnologias e a dificuldade de pagar as contas no final do mês. Muitos desses artistas já não conseguem saber se correm ou se ficam para serem comidos pelo bicho da competitividade e da fama. É o tema do livro-cd Na Lojinha de Um Real Eu Me Sinto Milionário, do compositor e cantor paulistano Paulo Padilha (Borandá, 2012), produção autobiográfica que inclui um pouco de vida alheia, como a da cantora que fingia ser sua própria produtora ao tempo em que entregava pizza para reforçar o orçamento (Soube, p. 19).
O tom desse trabalho de Padilha é o sentimento de inutilidade e teimosia presente no cotidiano do músico brasileiro que se vê pressionado por padrões de ofertas inclusivas de consumo, mas destituídos de qualidade no processo de discernimento. E ele canta: “O balanço tá bom só que eu não me encaixo” (Partido Baixo, p. 25). O autor demonstra total compreensão de que vive numa espécie de tempo errado e, sem saber como consertar essa realidade, trata de regurgitá-la numa catarse literomusical criativa.
O livro-cd de Paulo Padilha é cômico e perturbador em sua função de espelho, diante de um compositor que samba os seus sentimentos e dificuldades sobre parte significativa da situação atual da criação artística. Relato sonoro, literário e visual, feito na primeira pessoa de um artista que vai transformando o cotidiano em canções e crônicas intersemióticas cheias de provocantes revelações de uma vivência marcada por toda sorte de pressão psicossocial que aflige a quem tudo pode ser delegado, por “passar o dia fazendo música” (Todo tipo de tarefa, p. 26).
Em formato alternativo dos anos 1980, a publicação recontextualiza a estética de Somos todos assassinos, antológico livro independente do escritor mineiro Sebastião Nunes, que escracha o lado obscuro da produção publicitária. Paulo Padilha trilha a mesma ironia de um mundo no qual o dinheiro está na base das relações entre as pessoas e expõe seu olhar musical na cadência de variadas ilustrações com textos de máquina de escrever, imagens recortadas, estampas rebaixadas e, como não poderia deixar de ser, a reprodução da moeda e da cédula de um real. Na advertência grafada na página de copyright, o espírito da coisa: “Use o bom senso. Se é para curtir e divulgar, pode espalhar! Se vai faturar, é bom pagar!”
Nessa vida de quem vive a compor até em fila de banco, às vezes o artista fica no desamparo: “Eu bato o escanteio / Corro pra cabecear / Eu mesmo faço a jogada / Sento na arquibancada e grito gol! / Toco pandeiro, frevo, samba, rock, funk, soul / Armo o circo, vendo ingresso, e vou assistir o show” (Escanteio, faixa 6, p. 21). E para quem abandona o barco, trai a causa, pula do bonde, tira o time e deixa o sujeito sem clima, ele manda um refrão encolerizado: “Vai te catá, vai te catá / Que tem, vai, vai / Vai te catá, vai te catá / Que tu tem, vai, vai” (Idem).
A situação não é nada fácil para quem se acha incompreendido e sonha com um drummondiano “mundo, mundo, vasto mundo” apreciando a sua criação. Na faixa-crônica 1, Eu e minhas ideias geniais, o autor faz uma fala em reggae, como um cantador que recebe mote para um xote. Ataca de Itamar Assumpção, inclusive convidando as cantoras Suzana Salles e Vange Milliet para um coro na pegada “Isca de Polícia”. Como as coisas não funcionam assim, ele, na liseira, acaba viciado em telefonia, como descreve em Pré-Pago Pai de Santo (faixa 10, p. 31), para a qual contou com o auxílio luxuoso da Mart’nália.
Numa e outra de ficar inventando coisa, ele caiu na besteira de calcular quantas músicas cabem em equipamento de armazenamento digital e isso só contribuiu para aumentar sua angústia ao chegar a conclusão de que “Seriam necessários 34,3 metros lineares de estantes para armazenar 3.428,5 LPs e aproximadamente 9 anos, 4 meses e 26 dias para ouvir todas as canções de um tocador de mp3 com 120 GB” (p. 49). A pior conclusão estava por vir: se ouvindo um velho long-play por dia, sem repetir uma só faixa, a pessoa precisaria de uma década, não há muita razão para alguém fazer novas canções. Isso pode até ter algum fundo de verdade, mas, diante de tal constatação, a dúvida que surge para o compositor é o que ele vai fazer com o seu impulso criativo.
Tendo ou não quem vá ouvir, conseguindo ou não viver de música, o que Paulo Padilha mostra nesse trabalho é que o compositor à vera é aquele que nunca entrega os pontos. Foi assim quando ele levantou o astral ao entrar em uma dessas pequenas lojas populares de preço único: “Na lojinha de 1 real / Eu me sinto um milionário / Vasculhando corredores /Escolhendo escorredores de prato / Cores sortidas, baixelas de plástico / Fala, filhinho / Fala o que você quer / Pega o brinquedo / Pega, eu insisto / Filosofia de hoje / Compro, logo existo” (Lojinha de 1 Real, faixa 2, p. 7). Neste samba, o compositor experimenta a sensação de “eu posso atender a vontade do filho”, cujo comportamento foi moldado pelo mercado de consumo.
Muito boa também é a crônica-canção em que o autor revela o quanto gostaria de ter a oportunidade dada aos autores de livros de autoajuda. “Sempre olho aquelas gôndolas com CDs e livros de autoajuda e fico pensando, puxa, será que algum dia terei a honra de estar aqui, dividindo o espaço com essas maravilhas da cultura de massa?” (Guia fácil para lidar com pessoas difíceis, p. 9). É o compositor em situação de exílio, de desencanto, de cara com aquele vazio da solidão de Caetano, em London, London, um vagar sentido, enquanto as pessoas parecem passar apressadas com suas dores silenciosas. E o compositor fica indignado por transformar tudo isso em canção, esse “serviço sujo, que não enche a barriga dos meus filhos, q não alivia o trabalho da minha mulher, q não paga o salário da empregada, que não paga escola”… (Idem).
O pior é que ao comprar o guia na banca de jornal, ele descobre que a autora é sua mulher, aquela que consegue aguentá-lo, que tanto o atura, investiu na literatura. “Pois é… não é fácil casar com um compositor. No começo é lindo. Ele faz uma canção pra você. Suas amigas morrem de inveja. Depois começa a fazer canções pras suas amigas, com o pretexto de não magoá-las” até o dia em que, dizendo que se inspirou na história de um amigo, faz uma música para a sogra: “Minha mulher / Tá cada vez mais parecida com a minha sogra / Salga a comida, o joelho não dobra / Dorme na frente da televisão / Tá engordando, anda arrastando o chinelo de dedo / Ai meu Deus, eu tô com medo, / De enfrentar a situação” (Eu sou ela amanhã, faixa 4, p. 12). E conta que no começo a sogra estranhou a canção, mas quando viu que fazia sucesso nos shows, passou a pedir: “Paulo, toca aquela que você fez em minha homenagem!” (p. 13).
Na vida de compositor, essa confusão toda deixa o indivíduo com insônia e ele começa a maquinar uma forma de ter alguma serventia. Na madrugada lenta só pensa em deliberar sobre algo, em ter a sensação de utilidade. Imagina alguém implorando por uma canção, de modo que pudesse furar todos os prazos de entrega, como fazem os carpinteiros, os encanadores, pedreiros, jardineiros, técnicos de computadores, médicos, dentistas, advogados e prestadores de serviço em geral. Tem um tipo de devaneio como o da Jenny dos piratas de Bertolt Brecht e Kurt Weill que, ao limpar as mãos no avental inspirava a convicção de que um dia seria arrebatada por um navio de sedutores cinquenta canhões.
Em seu desejo de ser tão necessário, o compositor toma uma atitude concreta e serra as pernas da mesa e o braço do violão para fazer uma mesa de centro de sala para a festa de aniversário dos filhos. E confessa: “Fiz tudo com consciência / Paciência e determinação / Com a ciência de um bruxo / Num ritual de mutilação / Movido por um impulso / Que gritava dentro de mim / Preciso cometer um ato / Com começo, meio e fim” (Serrei as pernas da mesa, faixa 5, p. 15). À noite, os convidados fazem comentários elogiosos ao móvel… “E la nave va“, num enredo felliniano que dá sobrevida à criatividade nesse funeral que pode até parecer, mas certamente não é da literatura nem da arte.