Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 2 de Fevereiro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Nos nossos planos de férias para o mês de janeiro que passou estava uma cavalgada por algum lugar do interior uruguaio. Pesquisamos na internet e encontramos várias ofertas de equitação, em pacotes de turismo rural. Quando abrimos a página da estância San Pedro de Timote, tivemos empatia à primeira vista. A arquitetura, os jardins… sei lá, aquele rancho, que foi propriedade dos Jesuítas no século XVIII, perdido no meio do nada, nos atraiu. E fomos para lá.
Tomamos a rota 5, mais distante, porém de excelente pavimentação e duas vias em cada sentido, e seguimos de Montevidéu rumo ao centro-sul do país. Fomos entrando na paisagem mais típica do Uruguai, com amplas plantações e pastagens. Abrimos os vidros do carro para sentir o vento fresco que equilibrava aquele dia de sol, quando fomos surpreendidos por algumas abelhas perdidas do enxame e uma delas picou o ombro do nosso filho Lucas. Uma inflamaçãozinha, uma camada de Caladryl e tudo certo, mas fechamos os vidros e ligamos o ar.
Rapidamente fizemos os cem quilômetros que levam a agradável cidade de Florida, com seu parque de muitas árvores e um banho maravilhoso no rio Santa Lucía. Tomamos uma estrada secundária e pouco mais de setenta quilômetros depois chegamos ao povoado de Cerro Colorado. Impressiona logo na chegada um campanário de 36 metros de altura bem no meio do lugarejo. Com torre construída em 1954, esse campanário, fabricado na Holanda, em 1960, tem 23 sinos que, combinados com um relógio, lançam regularmente melodias ao vento por todo o dia.
Em um primeiro instante, aquela torre de sinos tão grande, incrustada em um lugar tão pequeno, foge um pouco ao nosso encadeamento lógico. Todavia, quando o povo do lugar conta que, exceto os comerciantes que se estabeleceram depois, todo mundo por ali era morador de estância, que foi incentivado a deixar as propriedades em que trabalhava, começa-se a entender o motivo de tamanha atração. A região possui várias fazendas centenárias, dentre elas a San Pedro de Timote, declarada Monumento Histórico do Uruguai.
De Cerro Colorado para San Pedro, tomamos uma estradinha carroçável de quatorze quilômetros, em corredor verde. Chegamos para o almoço e, como não poderia deixar de ser, o restaurante serviu uma parrilhada (churrasco) muito saborosa. Antes, porém, resolvemos caminhar um pouco pelo pátio e pelas instalações da estância, com suas árvores frondosas, suas flores vivas e seus bancos de azulejos espanhóis. Dividimo-nos em dois quartos, o que era o cômodo do casal proprietário do rancho, e o das suas filhas, onde até meados do século passado aconteciam as oficinas de bordado para as moças do lugar.
Naquele mesmo dia fizemos uma pequena cavalgada, para aquecer o desejo. Nos três dias que passamos em San Pedro de Timote, cavalgamos quatro vezes, conhecendo cantos que não seriam facilmente acessados por outro meio, que não à cavalo. De pequenas em pequenas trotadas fomos usufruindo de uma paisagem que nos dá a sensação de estarmos distantes da pressa e de qualquer pressão de rotina. E o que reforça isso é que nesses passeios só se ouvem os passos dos cavalos, o vento e o canto dos pássaros.
Os pássaros são mais notados naquele mundo de calmaria. O que achei formidável foi identificar uma quantidade enorme de aves que existem aqui no Ceará. Os casais de João-de-barro (hornero), que têm ninhos até nos postes de transmissão de energia, animam as copas das árvores cantando em duo, e os cabeça-vermelha (cardenal) levantam a crista ao notar nossa aproximação, enquanto o sabiá-laranjeira (zorzal) canta melodiosamente, como se tivesse acabado de inventar o mundo.
Cavalgando pelas coxilhas (cuchillas), que são pequenas colinas em campos cobertos de pastagens; e por entre blocos de árvores, preservados com o intuito de servirem de barreiras à doenças dos animais; pelas plantações de árvores destinadas à produção de madeira; e pelas matas ciliares, mantidas para protegerem os cursos das águas, é fácil ser surpreendido pelo levantamento de voo ruidoso das codornas (perdizes), pela caminhada de cabeça erguida dos carcarás (caranchos); e pelos anus-brancos (pirinchos) sempre com um sentinela em galho alto para dar o alerta se for preciso.
A lista do que vimos é grande: tem tetéu (tero), bem-te-vi (benteveo), garça (garza), golinha (gargantillo) e até bacurau (dormilón) zanzando pelos eucaliptos no crepúsculo. Foi lindo em uma das vezes que cavalgamos pradarias adentro e vimos dois bandos de emas (ñandu) com filhotes, correndo no meio do capim. Na vegetação do riacho (arroio) Timote, que dá nome ao lugar, cruzamos um ambiente sonoro de coros continuados de cigarras louvando a luz.
A presença de pássaros conhecidos é também muito grande na área interna. O periquito-maracanã (loro maracaná) domina a festa em ruidosos grupos no alto das árvores. Uma boa quantidade de pica-paus (carpinteros) se diverte nos troncos das árvores, provavelmente comendo cupim (termita). Pertinho do chão, nas flores mais fogosas, beija-flores (picaflores verdes) encantam os jardins. O verde entra pelas portas e janelas de vidro e as crianças brincam no pátio como se fossem pássaros, em risos e trilos, grasnidos e gritos…
Em San Pedro, as horas passam, mas nem parece que chegaram, porque ali, o tempo apenas muda de roupa com as luzes e as sombras de um recanto e sua poética de permanência. No tronco de uma desengonçada anacahuita, árvore muito popular no país, encontramos a marca das horas inesquecíveis, nos versos do Dr. Alberto Gallinal, o “tio Coco”, que falam de um inocente jogo de amor com sua mulher Elvira, com suspiros prolongados e olhos que dizem tudo, em uma tarde, “linda tarde”, teima quase calada a voz de Coco, enquanto “Vira” responde “muito linda” em “quatro olhos que se baixam”.
A estância dos Gallinal, com sua rica história integrante do mundo agropecuário e político do Uruguai, funciona como hotel de campo desde 1997. Pertence atualmente a um grupo empresarial espanhol, que mantém uma equipe de profissionais acolhedores, gentis e discretos, que mora em Cerro Colorado. Um desses profissionais é o Beto, um gaúcho de 57 anos, nascido no rancho e que comanda as cavalgadas. Seu nome de batismo é Carlo Ferreira, mas desde menino que responde pelo apelido. Beto ama os cavalos, ama a fazenda. Fala do lugar com a força de quem conhece, embora tenha sido treinado para seguir uma cronologia e isso reduz a sua magia de contador.
Tentei puxar conversa sobre ele mesmo e ele não acreditava que eu pudesse me interessar por suas particularidades. Eu queria saber como tinha sido a infância dele na fazenda e ele me respondia que a capela do rancho tinha um afresco do pintor italo-uruguaio Jorge Damiani. Forcei, forcei e num determinado momento, entre impaciente e bem-humorado, ele passou a mão na cabeça, virou para mim, e disse: “Periodistas! Periodistas! Los periodistas son muy persistentes!”. Reclamou, mas dentre outras coisas contou que gostava de cuidar do gado e das ovelhas, que brincava de esconde-esconde, que gostava de brigar e que ainda hoje é fã do Pelé, “el más grande del mundo”.
Depois das cavalgadas, íamos direto ao restaurante comer doce de leite com pão, biscoito, bolacha… mousses, panquecas, crepes e pudim de doce de leite… doce de leite como recheio de tortas, churros, alfajores e empadas… O Artur, não dispensava o sorvete de creme… mas tinha sorvete de doce-de-leite. É o Uruguai e suas delícias, em plena serenidade do campo.