Celebrações da cidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 15 de Abril de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Celebração da liberdade
(Benfica, 1978)
Eu passava distraído pela rua que ladeia o hospital psiquiátrico Mira y Lopez, quando tive que saltar de lado para me desviar de um corpo que caia de cima do muro. Era uma moça. Notei um travesseiro espetado nas pontas de prego da parte superior da parede. Ela estava fugindo. Segurei-a pelos pulsos. Fiquei sem saber o que fazer. Ela argumentou com tranqüilidade que precisava ir para casa. Eu nunca tinha visto uma “louca” tão de perto e estava ali segurando os braços de uma. Perguntei se ela iria com calma se eu a soltasse. Disse que sim. Ela estava descalça. Dei-lhe meu par de sandálias. Larguei-a lentamente, mas vapt!, ela desapareceu tão repentinamente entre os carros como surgira de cima de muro. Minhas sandálias ficaram no asfalto. Calcei-as novamente e me dirigi à portaria do hospital para relatar o ocorrido. Estava com um certo sentimento de culpa por ter deixado a moça fugir. Ao ouvir meu relato, a mulher da recepção disse simplesmente que era assim mesmo.
Celebração da juventude
(Centro, 1981)
Em uma das vezes que eu retornava para casa, depois de circular entre estudantes com os livretos em arte-xerox que costumava fazer, fui seguido por uma garota. Não sei como ela passou despercebida pelo sr. Chico, o porteiro turrão e legal do Edifício Paraguaçu. O certo é que desse dia em diante ela passou a aparecer ver por outra em meu apartamento. Certa feita hospedei por uns dias um amigo lá de Independência no 1001. Ao chegar em casa o som estava nas alturas e ele no maior rala e rola com a dita moça das poesias. Sem que me vissem, fechei a porta e fiquei esperando nas escadas. Quando ela saiu, ele ficou um tanto sem jeito para me contar o ocorrido, mas logo adiantei-lhe que ela costumava passar lá por casa, mas nunca tinha aceitado contar nada sobre sua vida, nem jamais tinha esboçado qualquer curiosidade para saber da minha. Ela era bonita e respirava poesia. Era um poema. Ele deu um suspiro aliviado e prometeu mandar uns versos para que eu entregasse a ela. Nunca mandou. Ela também nunca mais apareceu.
Celebração da amizade
(Varjota, 1982)
Eram umas duas horas da madrugada quando terminou a Festa das Nações, no clube do Náutico. Como tinha gastado toda a minha pouca grana na festa, resolvi cortar caminho na volta para casa. O edifício Palácio das Fontes, onde eu morava, fica na margem do riacho Maceió oposta à rua Manoel Jesuíno. Segui pela Antônio Justa. O trecho entre a Frei Mansueto e a Manoel Jesuíno era de areia solta e pouco iluminado. Fui surpreendido por seis rapazes que bloquearam a minha passagem. Eles se aproximaram e quando estavam a pouco mais de um metro de mim, reconheci que um deles tinha sido meu colega no 23 BC. Lembrei rapidamente que nas nossas brincadeiras no quartel ele era sempre pouco habilidoso e recebera o apelido de “caga-pau”. Chamei-o pelo apelido. Nada. Repeti, nada. Na terceira vez, ele me deu um abraço. Senti que os outros não gostaram nem pouco, mas ele fez questão de me “escoltar” até a Manoel Jesuíno, quando colocamos em dia a conversa do tempo da caserna.
Celebração da espontaneidade)
(Jacarecanga, 1984)
A casa onde eu morava era separada do Morro do Ouro pela rua Sargento Hermínio. Numa noite em que eu escutava música baixinho e com as luzes apagadas, ouvi o estalar das folhas secas no quintal. No início imaginei que fosse algum gato, rato, lagartixa. Mas soava estranho. Baixei totalmente o volume do som e a estaladeira parou. Peguei um revólver Ringo que guardava dos meus tempos de menino e sai de casa sem fazer ruído. Subi no muro e não titubeei: mandei logo que o ladrão, sem olhar para mim, saltasse para a calçada e colocasse as mãos na parede. A casa era duplex e na parte de cima morava uma senhora com uma espevitada filha adolescente. Elas desceram e fizeram um alarde tão grande que juntou uma porção de gente. E eu lá, apontando uma arma de brinquedo para um descuidista sem saber como dar continuidade a cena. Até que a mulher gritou que iria ligar para a polícia. Gritei também para que não fizesse aquilo. Naquele momento o ladrão olhou para mim como se não tivesse entendendo nada. Abaixei a “arma” e, em meio a um silêncio geral, falei para o ladrão que ele poderia ir embora. Disse que de outra vez não seria tolerante. O rapaz ficou tão atônito que, após me agradecer, inventou de se despedir da filha da vizinha com um beijo no rosto. No que ela meteu-lhe a mão na cara.
Celebração da confiança
(Papicu, 1986)
A sem-regras-móvel era um corcel belina I que eu possuía. Quando fui me mudar para a casa da av. Eng. Santana Júnior, quase no pé da duna do Conjunto Santa Terezinha, ela estava sem travar uma das portas. Na noite da mudança, dei o prego de gasolina na av. Leste Oeste, na parte alta da curva ao lado do IML. Estava sozinho e dentro do carro todo o meu som, o violão e umas caixas de discos e livros. Observei que a uns dez metros dali, quatro homens conversavam. Um em pé, apoiado numa bicicleta, e três sentados no meio-fio. Desci do carro, me dirigi a eles e contei o que se passava. Pedi-lhes por gentileza que olhassem as minhas coisas enquanto eu iria andando até o posto de gasolina mais próximo, já perto da capela de Santa Terezinha. Fui, voltei, coloquei o combustível no tanque e eles lá no maior papo. Agradeci. Quando cheguei em casa me perguntaram o motivo da demora. Respondi que estava aprendendo a confiar nas pessoas.
Celebração da cumplicidade
(Aldeota, 1990)
Andréa e eu tínhamos acabado de casar e estávamos cuidando de montar o nosso apartamento no edifício Morada dos Pássaros. Cada detalhe era uma troca, uma holografia de sonhos. De furadeira na mão apontei a broca para o ponto marcado onde deveríamos fixar um dos parafusos do porta-toalhas. A cerâmica era novíssima e acabara de ser assentada. Nunca iria imagina que exatamente naquele local passaria um cano com água. Mas passava. E quando a broca atravessou a cerâmica e o reboco a água jorrou em cima de mim. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Olhei para a Andréa e começamos a rir.
Celebração da fantasia
(Dionísio Torres, 2006)
Na sala do nosso apartamento havíamos improvisado um campo de futebol para um jogo muito especial. Era a primeira vez que os meus filhos Lucas e Artur participavam de uma partida, tendo eles, de um lado, que defender a trave do sofá, e eu, do outro, a meta da porta do corredor. Bola ia, bola vinha. Os times não davam mole. Tudo levava a crer que o jogo terminaria empatado. Até que numa jogada de bola parada, o Lucas (6 anos) virou para o Artur (4 anos) e disse: “Artur, distrai o papai!” Foi então que o pequeno Artur, na mais pura manifestação da inocência, juntou as duas mãozinhas, como se carregasse algo, e dirigiu-se para mim cantarolando: “Eu sou o vendedor de maçã…”. E me abordou: “Moço, você quer comprar uma maçã?” Foi o suficiente para que eu me distraísse e o Lucas marcasse o gol que deu a vitória ao time deles.