Celso Tiago no sertão P&B
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 30 de Agosto de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A fotografia em preto e branco é, na atualidade, uma das escolhas de quem se propõe imprimir marcas pessoais na arte de fotografar. Ela permite ao fotógrafo anunciar de cara que não está disposto a falar do mundo colorido da realidade em si. O p&b é uma metáfora visual. Com esse recurso de claro e escuro os fotógrafos Celso Oliveira e Tiago Santana lançam nuanças dos seus olhares sobre o sertão em dois ensaios de profunda alteridade: Quem Somos Nós, de Celso, e O Chão de Graciliano, de Tiago, com texto do jornalista Audálio Dantas (Tempo d’Imagem).
A apreciação mais acurada dessas duas obras requer que observemos a linha de uma mesma fronteira de geografia humana, que une e distingue os dois fotógrafos. Respondendo a uma expectativa autoral eles dão originalidade a aridez da velha temática nordestina, descolando seus trabalhos do estetismo da miséria. A fotografia de arte de Celso e Tiago não aborda dramas psicológicos, sociais, culturais e nem mesmo plásticos. Não explica nem quer explicar. Apenas descreve fragmentos da vida cotidiana de um lugar que merece ser visto além dos limites da visão.
O sertão p&b desses dois fotógrafos não é denúncia nem exaltação, mas sim, reconhecimento da vivência humana em um mundo distante, perdido na desconhecida diversidade do bioma caatinga, onde os jargões técnicos do semi-árido e os clichês dos deformados julgamentos políticos não o alcançam. A etiologia de Celso e Tiago assume o viés da opção artística, o que os leva a experimentar e partilhar sentimentos de admiração, comprometidos, não necessariamente com o que o objeto designa, mas com a relação de semelhança subtendida entre o significado real e o figurado de cada fotografia.
O livro “Quem somos nós”, de Celso Oliveira, faz uma afirmação respaldada pelo volume dos corpos, pelos músculos da gente, pela tração, pela pulsão e pelo fervor quase fluvial das veias. As pessoas em sua fotografia nunca estão sozinhas; sempre se fazem acompanhar por suas crenças, pelo que estão fazendo e até pelos espelhos onde não se vêem. A obra de Celso nos põe em nosso lugar ao colocar tão perto de nós as gentes que somos. Ela nos aproxima do próximo, do outro que somos. É uma fotografia táctil, que tem pele, energia e fio-terra do ser.
A dimensão humana está presente até onde as imagens não mostram seres humanos. O cão que rói o osso no piso do açougue, ao lado das carnes penduradas na parede azulejada, representa a realização do faro do outro cão, que, no solo arenoso e reticulado pelo sangue da criação abatida, aspira o cheiro plástico do encontro da fome com a morte. Esse mesmo tipo de transmissão extra-sensorial aparece nas fotos dos santos que não olham para as pessoas; que olham para suas mãos de dedos apontados para o céu, na contemplação tropológica do vínculo da fé com o divino.
O homem sozinho não existe na fotografia de Celso Oliveira. Mesmo afastado, mesmo isolado na grande clareira, no grande terreiro de chão batido, pode-se ver entre as árvores da borda do grande círculo de terra varrida, figuras de crianças e caiporas, que são os olhos da mata, o espírito da natureza a rondar a nossa razão de ser, sob um céu de nuvens de algodão-doce. Tudo o que aparece nas fotos de Celso é humano ou dá sentido à vida humana. Se falta a cabeça de um santo popular em uma fotografia, logo adiante ela pode ser vista na curiosidade lúdica das lagartixas, reforçando a liga da natureza humana com a natureza.
Ninguém consegue mesmo ficar sozinho nas fotos de Celso. A figura abraçada a uma coluna de alvenaria, fica por trás dela sem que possamos ver o seu rosto. Entretanto, na parede ao fundo podemos perceber seu acanhamento pelo avesso em um sem-número de mensagens primitivas e futuristas, rabiscadas no tempo humano de “Quem somos nós”. É incrível a capacidade de Celso Oliveira de colocar o parâmetro humano em tudo o que registra com suas lentes inquietas. As bacias, pratos e copos de alumínio, fotografados por ele nas feiras, não são simples objetos, refletem a esperança de saciar a fome e a sede.
Tiago Santana diz que Celso usa a linguagem fotográfica como extensão do próprio corpo, que ele se utiliza da fotografia como pretexto para se relacionar com o mundo. Talvez seja por isso que o seu trabalho produza a sensação das pessoas nunca estarem sozinhas. O retratista lambe-lambe, mesmo flagrado sozinho, faz a revelação de tantos e tantos retratos anônimos de pessoas que o acompanham em seu ofício e em sua vida. “Quem Somos Nós”, de Celso Oliveira, começa com a mão ambulante do fotógrafo popular exibindo um rosto qualquer, de qualquer um, e termina com a lavagem dos retratos em um balde, no calçamento. Página por página, conta uma história, a história de pessoas, seus retratos, suas existências.
Em “O Chão de Graciliano” encontramos Tiago Santana também com o seu “pretexto para se relacionar com o mundo”, que é a fotografia. Mais reflexivo do que Celso ele chega às pessoas pelo âmago de cada uma, pela vastidão interior que espelha o lugar onde elas vivem. As pessoas na fotografia de Tiago podem ser vistas por fora de si, o que me leva considerar o ambiente como fundamental na revelação do humano em sua obra. Nem em Graciliano Ramos (1892 – 1953) nem em Tiago Santana a paisagem é secundária como se costuma dizer. Pelo contrário, a paisagem faz parte das pessoas, não é pano de fundo, é fundo de alma. Graciliano escreveu com imagens e Tiago fotografou com palavras a mesma condição humana. Em períodos diferentes, mas no mesmo tempo essencial da caatinga.
Os mandacarus solitários no descampado do sertão abrem o livro de Tiago com a força do impacto da imensidão. É a primeira imagem do ensaio, a imagem em que o fotógrafo desvenda o nordestino por dentro. Onde o homem, senão no sentido de ausência que essa fotografia introjeta em nós? Isso só é possível porque a paisagem fixada não está parada; ela entra em atividade no que somos porque é parte integrante da nossa alma. O vaqueiro entra na caatinga como quem cavalga por dentro de si mesmo, confundindo-se com seu gibão de couro, com o boi e com a mata.
Foto a foto percorremos no ensaio de Tiago a trilha da realidade nordestina que nasce no humano. O homem do carro-de-boi não daria sentido à sua labuta se atrás dele os animais não puxassem a carroça de rodas de madeira; cheia de madeira cortada para fazer cerca e fogo. O mesmo carro-de-boi que mais adiante aparece como picadeiro para a brincadeira da meninada. A casa de taipa é o barro humano na trama de varas. Cada árvore, cada arbusto, cada pedaço de pau cortado é um golpe que damos em nós mesmos. A vegetação espinhosa da caatinga dá vida à criança no canto da casaca-de-couro e seus ninhos de garranchos.
A paisagem é parte das pessoas fotografadas por Tiago; ela se expressa como os seus sentimentos. A terra seca cortada pelo asfalto conta a vida dos que vão, dos que ficam, dos que vão e voltam, dos que não voltaram. A plasticidade do campo de palmas é mais rica porque ao fundo duas meninas a ligam com as roupas penduradas para quarar no varal. E as cabras pastam por nós… Assim como o ensaio corpóreo de Celso Oliveira, o livro etéreo de Tiago Santana termina com a simbologia da água. O balde dos personagens de Tiago é um açude. As figuras anônimas que ele registra dão saltos de frescor, em imagens que pulam no cenário da alma humana.