Censura ao MST
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 16 de Maio de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Injustificável. Stédile não invadiu os estúdios da televisão para colocar sua mensagem no ar. Foi convidado pela produção do “Opinião Brasil” e gentilmente aceitou. Em condições de normalidade, o programa é veiculado simultaneamente pela TVE. Quem pôde conferir a entrevista através da TV Cultura viu que não houve nada demais. Simplesmente foi possível ter um pouco de acesso à sempre abafada versão do MST. O grotesco na atitude do governo aventa, contudo, algumas preocupações graves. Se, por ser a TV Educativa subordinada ao Ministério das Comunicações, o veto aconteceu por uma ordem deliberada do Planalto, é um péssimo sinal da intolerância e da intenção escabrosa do poder. Caso tenha sido uma precaução política da direção da tevê pública, pior ainda. Nada é mais arriscado para a democracia do que quando, na dúvida, os subordinados se arvoram de intérpretes do desejo do chefe e passam a agir, apenas para se garantir no emprego. Sem uma reação contundente da sociedade, em ambas as situações a comunicação brasileira fica mais suscetível a desdobramentos de improvável tragicidade.
Ocorrências assim, funcionam como aviso prévio e estimulam a auto-censura dos profissionais da mídia. É no mínimo excêntrica a postura de um governo que faz esse tipo de proibição política e não consegue sequer regular o comportamento canibal das emissoras de tevê, que são concessões federais. Os excessos de invasão de privacidade, de sedimentação de preconceitos e de vulgarização da violência correm soltos, ultrajando a nossa incipiência cidadã e os órgãos oficiais destinados a tratar desse assunto ficam na raia cômoda da ineficiência burocrática. O telespectador tem o direito à informação para poder fazer juízo do que se sucede nos foros transtextuais do mundo político. É a única maneira de identificar quem está por trás de quê; quais as palavras que não estão ditas e as suas contingências. Paga impostos para isso. Merece o serviço bem prestado.
Os motivos da intervenção, publicados pelos censores, recaem na acusação de que o “Stédile não é uma figura democrática (…) não representa a discussão democrática (…) além de ser um indiciado pela polícia”. Se por acaso essas forem realmente as razões, boa parte da própria televisão brasileira, por si só, não deveria ir ao ar; os governos que não cumprem as decisões judiciais não dariam entrevistas e os juízes corruptos não estariam na passarela da imprensa. Tem coisa mais horrorosa do que a anomia representada pelos senadores Jáder Barbalho e Antônio Carlos Magalhães? Um diz em pleno Congresso Nacional que o outro é “batedor de carteiras” e, como troco, recebe um “Não discuto com ladrão”. E não acontece nada. Por tudo isso, vejo a suspensão da entrevista do dirigente do MST como coação à liberdade de imprensa, como uma tentativa “sociológica” de estabelecimento de uma nova e paradoxal doutrina, a da democracia unidirecional, na qual só é democrático o que convém.
É função do Estado acolher as verdades da sociedade. A adaptação democrática é um lento exercício de paciência e não de truculência. Os fatos sociais semeiam novas idéias que, por sua vez, geram novos acontecimentos e, assim, retroalimentam-se sucessivamente. Aos governantes é delegado o poder de gerir contradições e não de impor medidas que promovam a desapropriação econômica e cultural. O MST ameaça os interesses do governo porque contribui significativamente para a construção de uma contra-hegemonia, mas nem por isso precisa ser banido. Até porque, embora seja o mais organizado e o maior fenômeno social brasileiro da atualidade, absorve o sentimento de negação da política de dissolução do país. A questão do campo não se restringe ao mundaréu rural. Toda a sociedade tem interesse em resolvê-la e não há como cooperar para isso sem entender o que se passa. E não há como entender, sem acesso a suas distintas versões.
O sentimento coletivo não tem autor. As lideranças surgem pela capacidade de sintonia, interpretação e condução dos processos. Quando isso acontece, quem está no poder tende a querer ordenar a espontaneidade social, utilizando-se dos mais lastimáveis objetos de intimidação e censura. Essas atitudes pouco democráticas suscitam imperceptíveis vetores do coração humano e todas as respostas passam a ser insuficientes. Quem se atreve a ficar de cara com o conflito leva vantagem na assimilação da opinião pública. As crenças e os valores renovadores valem mais do que os métodos na hora do rompimento de circunstâncias. Impedir que os telespectadores escutem o que o dirigente de um movimento político tem a dizer é um equívoco irretratável. A campanha das “Diretas Já!” não existiu na mídia por um bom tempo mas, por ser real na necessidade política das pessoas, sua transmissão foi inevitável. O estereótipo dado ao MST não evitará que a sua versão fatalmente apareça.
No lugar de censurar a fala do João Pedro Stédile, o governo deveria experimentar a promoção de debates interativos, através do rádio, televisão e internet, sobre a questão da terra, envolvendo representantes dos diversos discursos relativos ao tema. Criar uma espécie de “Terra.com”. Claro que se for para simular, falsear e distorcer os argumentos de um ou outro segmento, é melhor não fazer. A participação do público, diferentemente do caráter tradicionalmente reativo a opções preestabelecidas pelas produções do gênero, não seria para mudar o final do programa, mas para orientar a forma de tratamento do problema como uma estratégia de país. Pena que a neurose de fracasso dos governantes não permita esse ou outro tipo compartilhado de construção dos rumos sociais. A insônia da veleidade do poder, tende a gravitar na polissemia de censura que, infelizmente, só serve para ampliar a crise institucional que nos abala e nos mantém no círculo vicioso das desigualdades gritantes.