Chico César, juazeiro e baobá
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 18 de dezembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Chico César deu um show ao pé do baobá no Passeio Público, em Fortaleza. Não um show musical, como é do seu ofício de compositor e de cantor, mas um show de lucidez sobre universalidades da África e do Brasil. Foi na sexta-feira passada (13), quando ele falou a respeito do tema Tradição Oral e Ancestralidade, no programa Memórias de Baobá, do Núcleo de Africanidades Cearenses (Nace/UFC).

Na conversa mediada pela professora cubana Sandra Petit, coordenadora do Nace, o artista paraibano invocou também a figura do pé de juá, como árvore venerável da cultura nordestina. Aproximando crenças e imanências associáveis à simbologia do juazeiro e do baobá, Chico César entoou a música “Na sombra do juazeiro”, dos forrozeiros orgânicos Elino Julião e Brito Lucena: “Meu bem vem cá, venha ligeiro / Eu vou lhe esperar, na sombra do juazeiro”.

O pé de juá e o baobá atraem pessoas, acolhem encontros de namorados, caçadores, andarilhos e inspiram cultos à espiritualidade. Na mais desolada das paisagens, no mais quente dos climas e no mais forte dos sóis eles estão presentes como pilares da terra, árvores solitárias e solidárias que simbolizam centralidade na vastidão do mundo. Como seres vivos longevos e dotados de propriedades medicinais, representam o testemunho dos tempos e a resistência em uma mítica e exuberante fonte de inspiração para a arte e a literatura.

Enquanto eu pensava em tudo isso, Chico César ia contando que o pianista congolês Ray Lema, seu amigo de muitas apresentações mundo afora, considera o compositor e cantor pernambucano Luiz Gonzaga (1912 – 1989) o mais africano dos artistas brasileiros. Lema tem a coleção completa de discos do “rei do baião”, escuta e toca esse repertório cantado na língua dos baobás e dos juazeiros. Ao referir-se a esse equilíbrio de raízes e matrizes, Chico mergulha em sua própria identidade profunda para dizer que “Não somos apenas negros”.

Ele tem uma reserva de autoridade ética, estética, cultural e política e com ela tomou a liberdade de refletir não somente a africanidade negra e sua diáspora. O autor de “Mama África” convidou sutilmente os presentes a pensarem grande, a se encontrarem além da condição de negro, sugerindo a necessidade de percepção da complexidade das transformações em curso, onde brotam diásporas de bairros, cidades, países e continentes.

Tratou de desidealizar a negritude, contando do quanto ele e o grupo baiano Ilê Aiyê foram destratados por produtores senegaleses no dia em que se apresentaram no Festival Mundial das Artes Negras, realizado em Dakar (2010). Foram escorraçados do palco para dar lugar a pirotecnia do cantor senegalês Akon. E olhe que o Brasil era o convidado de honra do evento, por ser um lugar de grande expressão da cultura negra, e que o objetivo desse festival é dar visibilidade positiva às africanidades e celebrar a riqueza da arte africana tanto no continente como em sua dispersão pelo mundo.

Nada da boca para fora. Quem ouviu Chico César naquele momento ouviu as razões que o levaram a compor “Respeitem meus cabelos, brancos”, seu inconformismo com os atos que querem atingir tudo aquilo que nega suas diferenças. Mas ouviu também seu incômodo com o tão pouco que se procura saber dessas diferenças em suas mais distintas manifestações. Mencionou “À primeira vista” como uma canção onde pôde juntar o estadunidense Prince e o malinês Salif Keïta na mesma pista de dança.

Embora exercendo o cargo de Secretário de Cultura da Paraíba, Chico César teve o cuidado de não conduzir sua voz com a influência do cargo. Não poderia, no entanto, deixar de contar o que vem fazendo como executivo da cultura em favor da integração de diásporas, por meio do PRIMA, Programa de Inclusão Através da Música e das Artes, que o governo paraibano está desenvolvendo em diversas regiões do estado, em polos de ensino que unem a música orquestral e a valorização da cultura local. A exemplo do projeto Neojiba, da Bahia, a experiência paraibana de estímulo à prática da cidadania a partir do exercício coletivo da música é fundamentada no “El Sistema”, exitoso programa venezuelano criado há quatro décadas.

Sob os auspícios da força vital do baobá e da proteção resiliente do juazeiro, Chico César transcendeu o passado das injustiças acumuladas e direcionou sua fala não ao ranço, mas a uma inspiração mandeliana que começa na sua própria história cercada de impossibilidades, desde a vida de menino negro no interior nordestino. Ao afirmar, por exemplo, que nordestino tem mais preconceito com pobreza do que sudestino com nordestino, ele desarma as bombas montadas pelas desavenças inter-regionais, intertribais, interétnicas e inter-religiosas, abrindo o debate aos sub-representados na construção democrática.

A ressonância direta das culturas, como malhas de interdependências da espécie humana, fluiu na memória de Chico César como imagens das vivências de Amkoullel, o menino fula do mestre malinês Amadou Hampâté Bâ (1900 – 1991), quando descreve algo que um dia viu de perto ou que escutou alguém contar, e não precisa se lembrar, apenas ver e ouvir novamente a narrativa do passado como uma experiência atual. Eis a grandeza desse encontro de oralidades no qual Chico César e aqueles que fizeram intervenções não falaram sozinhos; quem quis ouviu também a voz do baobá e do juazeiro.