COISA DE FRANCISCO – Laudato Si, Padim Ciço
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 166 (Editora Riso), págs. 26 e 28
Edição de janeiro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O padre Cícero Romão Batista (1874 – 1934) morreu inconformado com a injustiça que sofreu por parte dos cardeais de Roma, que suspenderam em 1889 suas funções eclesiásticas em decorrência do modo simples com que desenvolvia a sua atividade pastoral e, sobretudo, por conta do polêmico milagre da hóstia que mais uma vez sangrou na boca de uma beata na hora da comunhão.

Proibido de confessar, celebrar missa, fazer pregações e administrar os sacramentos, Cícero teve, inclusive, que se exilar em Salgueiro (PE), pois se continuasse naquele momento em Juazeiro (CE) seria excomungado. Essas punições pressionaram a desistência do sacerdote de sua forma de ser até 1926, quando, percebendo que não obteria êxito, a Igreja resolveu definitivamente lhe retirar as ordens.

O tempo passou, a figura do Padim Ciço tornou-se mítica e o pequeno vilarejo que ele transformou em cidade passou a ser o maior e mais pujante município do interior do Ceará e uma das mais importantes regiões metropolitanas do Nordeste. Independentemente da vontade e da compreensão da Igreja ele recebeu uma canonização popular e virou santo ecumênico, adorado por adeptos das mais diversas religiões.

Não fosse por respeito a um desejo seu, os devotos e admiradores do padre Cícero não estariam nem ligando para a possibilidade ou não de uma reconciliação. Mas, por determinação do papa Francisco, o sacerdote cearense recebeu finalmente o perdão da Santa Fé. A carta de reabilitação, assinada pelo cardeal Pietro Parolin, secretário de estado do Vaticano, foi recebida pelo bispo dom Fernando Panico, da diocese do Crato (CE), cidade natal de Cícero Romão, e tornada pública no dia 13/12/2015.

O que mais chama a atenção nessa reaproximação formal da Igreja com o seu pastor desgarrado é que ele está plenamente sintonizado com os novos direcionamentos estratégicos de Roma, revelados e praticados pelo papa Francisco. O enfrentamento do modelo político e econômico que tem provocado a degradação da vida social e do meio ambiente, presente nas mensagens de consciência verde integral de Francisco, é um ponto de grande valor nessa reconciliação.

A referência invocada pelo papa ao antológico cântico “Laudato si, mi Signore – Louvado sejas, meu Senhor” (séc. XIII), de São Francisco de Assis, para nominar e conceituar a Encíclica de agradecimento ao Criador por tudo o que compõe a “nossa casa comum”, lançada em 2015, tem muito dos mandamentos ecológicos que Ciço pregou na passagem do século XIX para o século XX.

Embora Cícero Romão Batista não seja um santo apenas católico, sua reabilitação chega em um momento especial da vida brasileira, quando o país vive uma grave crise política e religiosa, com tentativas de derrubada anticonstitucional de um governo eleito e proliferação de mercadores da fé, tendo como consequência o agravamento da recessão econômica decorrente da planificação mundial dos exageros neoliberais.

O papa Francisco se une ao padre Cícero nessa circunstância trágica em que os benefícios educacionais, de saúde e de transferência de renda, conquistados pelos mais pobres, são alvo de cortes orçamentários forçados por irresponsabilidades fiscais. A potencialização da crise econômica assumida pelos setores conservadores do país a fim de gerar uma instabilidade sistêmica que justifique o golpe entra em um círculo vicioso preocupante: tirada a renda da população, reduz-se o consumo, a produção industrial cai, o comércio desaquece, aumenta a taxa de desemprego e o mercado vai se acabando, o que não é bom para ninguém.

A invenção sadomasoquista de uma crise econômica maior do que ela realmente é encontra argumentos contrários nos números de estudos como o do IPC Maps, divulgado em outubro de 2015, que mostra o crescimento do poder aquisitivo nas áreas onde a economia sempre foi estruturalmente mais precária. Não por coincidência, mas por consequência do fenômeno padre Cícero, Juazeiro do Norte é o município cearense com maior expressão econômica, com potencial de consumo da ordem de R$ 453,9 milhões.

No meu livro “Ciço na guerra dos rebeldes” (Cortez Editora), procuro colocar, pelo viés da cultura e sobretudo para o leitor jovem, a evolução do lugarejo para o qual Cícero foi designado para ser capelão, por volta de 1871, e, mais de um século depois, o raio de sua influência econômica, que abrange diretamente o oeste da Paraíba, o noroeste de Pernambuco e o centro-oeste do Piauí. Somente em romarias a terra ciceropolitana recebe mais de dois milhões de pessoas todos os anos.

Não creio que seja necessário, mas com a reabilitação é muito provável que a Igreja pense em formalizar a canonização do Padim Pade Ciço. Mas isso não é o mais importante. A grande relevância dessa reconciliação é, antes de tudo, atender a uma vontade pessoal de Cícero Romão, e, depois, o fato de o “perdão” ser assinado por um papa que tem se mostrado antenado com questões profundas das contradições humanas nesse alvorecer do século XXI. E o padre Cícero é um exemplo concreto de tudo isso. Laudato si.