Os eventos antirracistas que vêm ocorrendo em todo o mundo têm desafios especiais na pauta brasileira. Um deles está na dificuldade dupla da maioria discriminada de, por um lado, mudar a forma de ver o preconceito e, por outro lado, de se colocar na condição de implicada diretamente na questão. Nesse jogo de por que e de por-que-não a grande transformação recai sobre os próprios interlocutores para que priorizem as perspectivas e não os retornos ao que já não somos mais.
O exercício do autorreconhecimento está em se encontrar no semelhante por aproximação da memória comum de pluralidades e por afeição mútua de singularidades entre pessoas e grupos, evitando a tentação de busca por novas hegemonias. O ser múltiplo e suas muitas almas deve ser a inspiração de quem realmente luta por justiça social, pois a segregação amplia a negação e reduz a força mobilizadora para a desconcentração da riqueza, para a criação de acordos democráticos plenos e para a universalização do estado de direito.
A sociedade brasileira precisa despertar para a relevância pluriétnica e multirracial decorrente do seu trágico processo histórico. Na prática, o princípio das convergências parece factível para orientar o usufruto consensado ou consentido das distintas características das gentes do país, sem que seja preciso devorar umas às outras a fim de adquirir qualidades vitais. Qualquer gesto em favor de pureza racial e étnica é anacrônico. Não existe nada na humanidade que não tenha sido cruzado. O dualismo é expressão de fraqueza política, de escassez criativa, de redução de liberdade cultural e de falta de organização da potência do múltiplo no espaço mental.
O conceito de colorismo abrange um dos sintomas do racismo, manifestado contra pessoas negras ou que apresentem traços de negritude, seja no tom da pele, nas características faciais ou no tipo de cabelo. Quanto mais escura for a pele, mais a pessoa é excluída. Essa hierarquia de nuanças de melanina não deveria se aplicar como elemento de discriminação na sociedade brasileira, composta por diferentes povos indígenas originários, diferentes colonizadores, diferentes povos africanos, diferentes imigrantes europeus, diferentes árabes, diferentes asiáticos e diferentes vizinhos americanos.
Participei de uma ação do IBASE pelo Censo da Cor 1991, na estação Praça Onze do metrô do Rio de Janeiro, sensibilizando pessoas pretas e mestiças a assumirem a cor como forma de combater a ideologia do embranquecimento. Na capa do folder, uma foto com três corpos em variação de negritude ampliava a força da mensagem “Não deixe sua cor passar em branco”. O incentivo para que cada um se definisse nas opções branco, preto, pardo, amarelo ou indígena visava dar um basta no desejo induzido de alvura, elevando a disposição da maioria marginalizada brasileira para romper com o autoalheiamento e então lutar por direitos sociais e equidade na vida democrática.
O atual tempo de transição de significados é propício para recolocar o colorismo no campo reflexivo brasileiro. Convém lembrar que o fim do racismo passa também pelo fim do ganho ilícito, da ostentação, do consumismo, do desperdício, do paternalismo, do compadrio e do descaso com a natureza, enquanto redefinição de coletividade na qual o próximo possa ser descoberto em nossos atos.