Com Woody até Nebraska
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 19 de março de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Ele já apresenta sinais de demência quando recebe pelos correios um folheto publicitário de um sorteio e fica convencido de ter ganhado um milhão de dólares. Em desacordo com as explicações da mulher e dos filhos, que insistem em dizer que ele não foi premiado coisa alguma, e não tendo mais condições de dirigir, Woody tenta pegar a estrada a pé em busca de receber a grana do prêmio de que imagina ter tirado a sorte.

É nessa cadência que se move o filme Nebraska (2013), do cineasta Alexander Payne, que assisti dias atrás no cinema do Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. Com fotografia em preto e branco, ao combinar movimentos alterados de recordações e seus vínculos com os sentimentos e as emoções, o novo trabalho do diretor greco-estadunidense trata o tema com respeito, senso de humor e engenhosidade dramática.

A “notícia” da premiação ativa a cabeça do protagonista, tocando zonas sensoriais capazes de deflagrar sua decisão de ir receber o prêmio a qualquer custo em uma cidade no estado de Nebraska que fica a 1300 km de distância de Montana, onde mora. O golpe de marketing é o mote para uma história de aproximação familiar que se agudiza quando Woody deixa escapar o motivo da viagem, provocando uma série de situações desagradáveis com relação a velhos amigos e parentes.

A insistência do protagonista gera um problema para a mulher, também em idade avançada e apresentando sintomas de impertinência, e para os dois filhos, um em ascensão profissional e outro se virando como vendedor em uma loja de aparelhos eletrônicos. Embora tendo um filho pregado o asilo como solução e o outro tomado a atitude de levar o pai até o escritório da empresa emissora da correspondência, todos acabam juntos.

O inconveniente de procurar entender o que os pais acham bom para si pode ser vinculado a uma crescente perda da reverência aos mais velhos na atualidade. O dever filial parece seguir um rumo oposto ao aumento da taxa de longevidade, conquanto o êxito nessa relação depende em grande parte de como são encaradas as fantasias da pessoa em idade avançada. Nessa dinâmica, o real é menos importante do que a crença que o idoso tem do que possa ser a realidade.

A mente de alguém como Woody reconfigura situações de sugestionabilidade, levando o filme a propor que a perda da percepção consciente não seja vista como comportamento insano, mas como parte do processo de desativação do ser, quando a memória gasta reprocessa imagens que se perdem no tempo. A mulher de Woody, indignada com a insistência do marido em receber o prêmio, deixa escapar: “E eu não sabia que o filho da puta tinha vontade de ser milionário”; depois arremata: “Ele devia ter pensado nisso antes e ter trabalhado para ganhar”.

O filme Nebraska mostra com humor e drama o valor da atenção às ilusões e teimosias da velhice, também como reação à perda de potência social. Inspira-nos a pensar no velho caduco como alguém que está reduzindo a capacidade de operar para poder reintegrar-se ao plano transcendente da natureza. Daí a necessidade de esforços para romper com a mania de confinamentos e criar mais espaços privados e públicos para uma vida plena e digna na velhice.

Sobre a credulidade da pessoa idosa diante de golpes de marketing, como o que seduz Woody, os neurocientistas costumam atribuir esse comportamento tanto à decorrência da idade quanto a casos de acidentes que produziram lesões em partes específicas da cabeça. Tais revelações nos levam a pensar sobre as razões que fazem da objetividade algo entendido como mais verdadeiro do que a verdade narrativa. Quem falha na memória talvez não falhe mais do que quem não consegue considerar os lapsos das particularidades humanas.

É comum projetar-se uma imagem equivocada da velhice em associação com a ideia de que, ao envelhecerem, os pais passam a ser os filhos dos filhos. Isso é muito ruim porque desvirtua os papeis e, consequentemente, o sentido do cuidar. Com base nessa compreensão, muitos filhos passam a mandar nos pais, desaguando sobre estes seus complexos freudianos e suas frustrações sociais, tirando deles a liberdade de viverem suas velhices em paz.

O tempo da idade avançada é outro, muito diferente do tempo da infância. Enquanto a criança está sendo ativada em corpo, mente, universo simbólico e espiritual, a pessoa idosa vive a desativação natural do ciclo da vida. São perspectivas muito distintas para terem o mesmo ponto de fuga. Essa confusão tende a criar caricaturas e a levar os mais velhos a serem tratados pelo que não são e nem querem ser, de acordo com os interesses dos filhos.

Filmes como Nebraska nos dizem que não há rabugice dos pais que tire dos filhos a responsabilidade de apoiá-los como são, a fim de que possam ser felizes no exercício do tempo de arrefecimento de suas capacidades biológicas, intelectuais e de consciência. Para isso, precisamos romper com o hábito mental de valorizar os cuidados que aprisionam e com a ideia de prolongamento dos dias de vida em detrimento do viver. O melhor que se pode fazer nesses casos é ir com Woody até Nebraska.