Como se fosse na mesa de bar
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 07 de Abril de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Foi começar a ler “Trem Doido” (Editora Limiar) o novo livro do jornalista Mouzar Benedito, e sentir logo a chegada da voz de Elis Regina cantando “Saudade dos Aviões da Panair”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. A canção, que tem subtítulo “Conversando num bar”, virou trilha sonora do meu ouvido interno e com ela segui causo por causo, num agradável testemunho de que não existe mesmo nada nesse planeta que não se fale em uma mesa de bar. Isso mesmo, esse livro é uma mesa de bar disfarçada de antologia pessoal de momentos contáveis.
O texto é fluido e bem calibrado aos trejeitos do autor, com toda a sua bem-humorada anarquia diante dos fatos e atos. Mouzar chega com o seu simpático ar de mico-leão-dourado e abre a guarda do leitor para sintetizar e recriar coisas que fez e que viu em relatos que mistura sem-vergonhice e aguda observação social própria da sua experiência e cheia de cortes irônicos na realidade. É um livro de quem se define pelo que é, e não pelo que teria desejado ser; um livro de andarilho, com suas pequenas histórias marcadas pela ausência de fronteiras.
Com mais de vinte livros publicados Mouzar Benedito, 64, apresenta uma versatilidade de gêneros que vai da biografia à ficção. Já escreveu a vida do irreverente jornalista gaúcho Barão de Itararé, do escravo abolicionista baiano Luís Gama e do romântico gatuno italo-paulistano Gino Meneghetti, e uma série de histórias de detetive, assinada como Saphira Minds, pseudônimo antes utilizado para fazer o horóscopo de uma revista feminina. Segundo ele, como “safira” nas geraes quer dizer masturbação e “minds” em inglês significa mente, as leitoras da revista “Querida” achavam o máximo, embora não soubessem que no fundo o nome da astróloga queria dizer “masturbação mental”.
Mouzar já publicou também livros de humor, um de “memórias burlescas da ditadura” e o recente “João do Rio, 45”, no qual narra o cotidiano da Vila Madalena, notável bairro de São Paulo, na voz da parede de uma das casas ocupadas pelos estudantes que, na década de 1970, invadiram a área para do jeito que desse morar perto da Universidade de São Paulo. Num exercício livre de metalinguagem ele aborda os ouvidos de uma das casas da rua João do Rio com ingredientes literários inspirados nas pegadas do cronista carioca que dá nome à rua. É assim que conta da movimentação que transformou aquele bairro em um disputado recanto boêmio da cidade.
O livro não tem floreios gráficos. É um livro e pronto. Conta com uma ilustração aqui e outra acolá, feitas pelo cartunista Ohi, mas o que vale mesmo é a conversa solta. O autor escreve porque escrever faz parte da sua vida, ora como protagonista, ora como escritor. Tudo o que aprendeu como engraxate, barbeiro, seleiro, caixeiro, estudante, contador, geógrafo, professor, pesquisador de cultura popular, tradutor e jornalista tem relação direta com seu grolado literário, o que faz com que as ações narradas nunca sejam gratuitas. Os causos e as crônicas de Mouzar se movem e se locomovem com ele até saltar na estação do “Trem Doido”, uns tomando juízo e outros não.
O título do livro alude a uma das formas como os mineiros chamam “mulher bonita”. O autor ressalva que a única coisa que essa gente não chama de trem é o trem, “quer dizer, o trem de ferro”. É no trem de livro que Mouzar senta com o leitor para se embrenhar Brasil adentro, tendo como distração favorita a arte de zanzar, beber e jogar conversa fora. A leitura é ágil e divertida. “Trem Doido” põe nos trilhos uma reconstituição de acontecidos, revigorada pela magia oral que faz a memória de mesa de bar. Ouve-se a entonação do autor, quando ele diz coisas como “Era uma violência enorme” (p.22). Tem eloqüência na escrita.
Os assuntos e as abordagens são elásticas. Em uma das crônicas, Mouzar conta do dia em que estava dependendo de uma autorização da primeira-dama mato-grossense para fazer uma pesquisa de cultura popular com artesãos locais. Como se fosse pouco alguém ter que se submeter a esse tipo de procedimento, apenas porque a mulher se sentia dona daquelas pessoas, a demora na sala de espera foi irritante. Ao forçar a entrada, ele e o fotógrafo que o acompanhava foram atendidos na presença de algumas senhoras da sociedade, ocasião em que deixou sair devagarinho uma bufa bem fedida e a primeira-dama autorizou rapidamente tudo o que eles queriam (p. 56-57).
Mas nem tudo é avacalhação no “Trem Doido”. Em outra parte do livro, Mouzar Benedito relata a satisfação de descobrir em Juazeiro da Bahia uma instituição criada por inspiração em um trabalho que ele havia feito para o Guia Rural Abril, sobre agricultura apropriada ao semiárido. Após escutar uma palestra do diretor do Instituto Regional de Pequena Agricultura Apropriada (IRPAA) sobre as atividades desenvolvidas pela organização, Mouzar se apresentou para ele e comentou sobre a matéria que havia feito para a revista da editora Abril. Diz que o diretor “arregalou os olhos” e declarou: “Esta ONG surgiu a partir de uma grande reportagem que vocês fizeram sobre a agricultura apropriada para o Nordeste!” (p. 72-73).
Para ilustrar a variedade de enfoques constantes nos causos e crônicas do livro, além de cerveja e cachaça, é bem comovedora a história que Mouzar conta do Miguel Turco, um comerciante libanês (e não turco) com quem ele trabalhou quando tinha quinze anos. Quando Miguel percebia que a pessoa era pobre ele vendia a mercadoria a preço de custo sem o freguês saber. “Não se exibia, não transformava essa ação em ‘caridade’, não humilhava o sujeito que não podia pagar os preços normais” (p.112).
O autor pertence à categoria dos que chutaram o pau da barraca dos valores burgueses para experienciar a aventura da insubordinação dos caminhantes. Sua matriz está no talco e no álcool da barbearia, na sola e na cola da sapataria, no calor e no ardor da terra, na lavra da palavra, enfim, na mistura de habilidades com que percorreu com gosto o País pelos atalhos. Buliçoso e puxador de papo, camarada e bonachão, materialista e ‘saci’ólogo, ele caiu fora do centro gravitacional dos estereótipos e da busca do entendimento das contradições dessas metades para viver e contar a sua tresloucada e solícita humanidade.
Querendo ou não, “Trem Doido” dá um sentido para o vagar, para a vida de quem não se cansa de mexer com o que está quieto, ao desafiar a alma das histórias de perambulação, conferindo memória a si e aos amigos com quem compartilha a noção dos dias, das horas e de lugar no mundo. Transbordando do que resta das situações que a existência lhe impõe e do que se acumula com a sua verve inventiva, Mouzar Benedito solta a língua, solta o verbo preso na absurda normalidade hilariante. É mesa de bar. Boteco puro. Verbosidade olho no olho, lembranças em trânsito e outras sensações que dialogam com quem pega esse trem.
O melhor de Mouzar é que ele senta à mesa como se fossem vários. Tem conversa para tudo quanto é roda. É um autor de muitos temas. Fala e escuta como quem oferece ou pede carona na sua viagem ou na viagem do outro. Deslocar ou deslocar-se para onde for e do jeito que for é um segredo que ele faz questão de espalhar. Quando isso acontece em livro, como é o caso de “Trem Doido”, ele trata o leitor como um convidado a interpelá-lo sobre a transformação dos afazeres em farra e da experiência em terreno fértil de recordações. E como uma recordação puxa outra, continua ressoando em mim a voz de Elis cantando que “em volta dessa mesa existem outras falando tão igual”. É o “Trem Doido” pedindo passagem.