Comunidade de aprendizagem
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 03 de dezembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Cansado de tentar convencer os vivos, que além de terem dificuldade de escutar, confundem educar com escolarizar, o professor José Pacheco (1951) resolveu mandar cartas aos mortos, com críticas, desabafos e crenças em novas possibilidades educativas. Enviadas para lugares etéreos, essas correspondências são dirigidas a 25 pensadores da educação no Brasil, do período entre os séculos XVI e o XXI, vinculados entre si pela ideia do “aprender em comunidade”.

O educador português, idealizador da Escola da Ponte, instituição notabilizada pelo projeto inovador, baseado na autonomia integrada dos estudantes, revela que com isso nutre a esperança de que suas cartas também venham a ser lidas por educadores sensíveis. Logo na epígrafe ele recorre a uma citação do educador cearense Lauro de Oliveira Lima (1921 – 2013) para dar o sinal da sua convicção íntima: “Escola, no futuro, será um centro comunitário”.

Os textos, escritos a partir da vivência concreta do autor no âmbito da escola, enquanto território de construção coletiva do conhecimento, com respeito e afeto, estão reunidos no livro “Aprender em comunidade” (Edições SM, São Paulo, 2014), publicação distribuída a educadores brasileiros interessados na reconfiguração de um modelo escolar inventado na segunda metade do século XIX e que perdura na atualidade.

Em um mundo no qual se multiplicam as comunidades educativas, onde a informação está paradoxalmente pulverizada e concentrada, cresce a pressão sobre a escola, enquanto nodo de uma rede de aprendizagem colaborativa, o que requer projetos pedagógicos com novo desenho escolar inspirado em trocas, saberes, conhecimentos e eventos culturais e desportivos. Como a palavra “comunidade” é polissêmica, o autor tem o cuidado de evitar que esse conceito caia em reducionismos locais e regionais.

É atraente o modo como Pacheco remete seu pensamento. Primeiro vem a carta, depois a biografia e a bibliografia do respectivo destinatário. Ao Padre Antônio Vieira (1608 – 1697) reclama das escolas que têm banheiro de aluno separado de banheiro de professor. Para Alessandro Cerchiai (1877 – 1935) fala das escolas libertadoras, inclusive da Escola Germinal do Ceará (1906), das quais as famílias participavam da gestão da vida escolar, e lamenta que a escola moderna esteja a serviço da reprodução de uma sociedade doente.

Na carta a Armanda Álvaro Alberto (1892 – 1974), criadora da Escola Proletária de Meriti (RJ), uma das primeiras da América Latina a servir a merenda escolar, dentro da compreensão de que não dá para aprender com o estômago vazio, protesta contra quem confunde educação integral com uma escola em tempo integral. Nessa escola, as crianças complementavam o dia de aula com o cultivo da horta e a criação de animais. A Fernando de Azevedo (1894 – 1974), critica a escola competitiva.

Dirigindo-se a Milton Santos (1926 – 2001), declara que teve a desagradável surpresa de achar escassas referências a autores brasileiros nas bibliografias de teses e de raramente encontrar as obras do geógrafo nas bibliotecas. Faz ponte para Anísio Teixeira (1900 – 1971): “Como seria útil aos educadores do nosso tempo a leitura das tuas obras! Mas estão demasiado ocupados na luta pela sobrevivência, não lhes sobra tempo para o estudo”. E diz a Lourenço Filho (1897 – 1970): “É admirável como, já desde 1926 (…) denunciavas a profunda separação existente entre a escola e a vida social”.

Ao poeta João Cabral (1920 – 1999), escreve: “Gostaria de poder dar-te boas notícias da educação, mas essas são poucas. Delas não falam os jornais, apenas te darei notícias de professores atentos à tragédia”. E complementa dirigindo-se a Darcy Ribeiro (1922 – 1997): “É triste, caro Darcy, verificar que aqueles que detêm o poder de mudar não entendem que, junto com Anísio Teixeira, Paulo Freire e Lauro de Oliveira Lima, tu formas o quarteto mais fecundo, fértil e injustiçado da história da educação em nosso país”.

Deste modo, José Pacheco provoca o leitor, valendo-se de nomes como Florestan Fernandes, Cecília Meireles, Villa-Lobos e tantos outros. É basilar o teor da sua carta a Agostinho da Silva (1906 – 1994), no trecho em que ele reconhece no filósofo alguém que já sabia “que escolas são pessoas, comunidades feitas de pessoas, que aprendem umas com as outras. E que o desenvolvimento dessas comunidades depende da diversidade de experiências das pessoas que as integram”. Arremata na missiva a Nise da Silveira (1905 – 1999): “O espaço do aprender é todo o espaço, tanto o universo físico como o virtual, é a vizinhança fraterna”.

José Pacheco mostra o quanto de saídas decentes pode existir por trás da especulação escolar dominante. Fala dos motivos que o levam a ter esperança, mesmo diante de um quadro de escola agonizante: “Vejo emergir práticas protagonizadas por educadores que compreenderam que escolas não são edifícios”. Adverte aos novidadeiros que não se trata aqui de “levar a comunidade para a escola”, ou de fazer “visitas de estudo à comunidade”, pois “ninguém visita a própria casa”.