Durante o tempo de recolhimento por decorrência da pandemia covidiana, quando não é recomendado que as crianças se encontrem fisicamente umas com as outras, o estímulo para que preservem as amizades pelos meios digitais é bom, mas é sempre muito saudável que meninas e meninos mantenham contato por meios imaginários com a infância dos personagens da literatura. A compreensão do que está se passando nas relações humanas e com o planeta necessita de elementos sutis fartamente presentes na ficção.

Crianças como Manolin (Ernest Hemingway) têm muito o que inspirar com sua confiança no velho pescador que já não conseguia pescar nada em mar aberto. Outra companhia sugestiva é a de Orelha-de-pau (Linda Sue Park), o garoto coreano que não teve a oportunidade de ler grandes obras, mas aprendeu a ler o mundo. Essa inteligência social encontra-se tanto em Nélio (Henning Mankell), o menino moçambicano que fez da vida um teatro, quanto em Boka (Ferenc Molnár), o garoto que aplicou a experiência da rua na defesa de um campo de brincadeira em terreno baldio de Budapeste.

A literatura permite acesso a emoções da vida fora de casa, seja em danações de Huckleberry Finn (Mark Twain) no enfrentamento da hipocrisia e da ganância, seja na atenção seletiva de Chapeuzinho Vermelho (Perraut e Grimm) ou no jeito infantil de perceber o mundo do Pequeno Nicolau (René Goscinny). As histórias com personagens infantis deixam as crianças que amamos mais próximas de si. Protagonistas como Pinóquio (Carlo Collodi), que nasceu de madeira, e Emília (Monteiro Lobato), que veio ao mundo como boneca de pano, mas que conquistaram o direito de ser criança, são de grande valor para o fortalecimento da condição infantil.

A situação vivida pelo Matias (Mario Quintana), o menino transformado em pato amarelo, que só consegue dizer quá… quá, assemelha-se com a rejeição no Patinho Feio (Hans Christian Andersen), na cor Flicts (Ziraldo) e no Cabeça-de-vento (Bia Bedran). O aspecto de bicho humanizado torna-se mais atraente para a criança em tempos de vida animalizada. A cena da cachorra Baleia (Graciliano Ramos) sonhando com um preá assado é tão animista quanto a busca de consolo do Zezé (José Mauro de Vasconcelos) com o amigo Pé de Laranja Lima.

Em outra perspectiva, o contato infantil por meios imaginários é um bom provocador de memória. Amkoullel (Amadou Hampâté Bâ), o menino fula malinês, fala do que vê enquanto conta, assim como Chiquinho (Baltasar Lopes da Silva) atiça a cultura crioula cabo-verdiana em tudo o que faz. Em um mundo dominado pelo consumismo é urgente que meninas e meninos vivenciem a saga de Coyotito (John Steinbeck) e sua família pelos desconhecidos códigos de riqueza e desfrutem do passeio de Osias (María Elena Walsh) pelas ruas, olhando entediado as vitrines das lojas, onde os relógios não marcam o tempo de brincar.

A brincadeira no tempo e no além está delicadamente contada em aventuras como a da Mãe Na Tureza (Alberto Morávia), quando tudo ainda estava por fazer, a de Maribel (Maria Clara Machado), o amigo Pluft e sua família de fantasmas, e a dos irmãos Karl e Jonathan Coração de Leão (Astrid Lindgren), desenrolada em camadas de existência pelos lugares do outro lado das estrelas. E não há menina ou menino que não goste de estar com seres lendários, tenham eles existência subsaariana como Kiriku, tupi-guarani como o Saci ou andina como o Momoy.

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Imagem do topo: Detalhe de obra da artista plástica cearense Nice Firmeza (1921 – 2013). Acervo pessoal