Contrato anti-Social
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 24 de Outubro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Nas ações mais simples do nosso dia-a-dia não é preciso estar muito atento para identificar o quanto temos deixado cair em corrosão a nossa base de valores sócio-culturais. Há momentos em que não sabemos o que está realmente valendo nas relações mantidas de modo obscuro com as instituições oficiais, privadas e nas relações interpessoais. Vestidos com um bom colete à prova de confiança passamos a investir mais o nosso esforço resolvendo entraves gratuitos para nos defender do que construindo as obras de um mundo que acreditamos.
Estamos habituados com a obsolecência acelerada de tudo o que adquirimos. O mundo ficou perecível. Não dá nem tempo de aprender direito como se usa um produto e chega logo uma nova versão pedindo a vaga. Não há tempo para nos apegarmos a nada. Circulamos soltos entre a impotência e alguns reflexos de insurreição. A fraqueza cínica da elite brasileira tratou de complicar mais ainda o problema, travestindo para o grotesco boa parte do significado das relações sociais determinantes. Revelou-se em escândalos públicos seqüenciais e foi contaminando a população com a descrença na justiça, na política e no trabalho.
O caráter de urgência e a insegurança que a onda de desrespeito e a falta de perspectivas provocam, incita as pessoas a reverterem impensadamente os limites da liberdade que historicamente foram concedidos ao Estado para a garantia do equilíbrio social. Quando eu nasci, há quatro décadas, San Thiago Dantas, ministro do então governo João Goulart, cunhou a frase certeira de que o povo brasileiro era bem melhor do que as suas elites. Continua sendo. Apesar de tudo, somos uma gente que continua honrando alguns valores popularmente conhecidos como vergonha na cara, honestidade e coragem de ter esperança.
Convém lembrar que a ética da barbárie não dá muita trégua a quem insiste em preservar o caráter nacional. O Contrato anti-Social imposto ao Brasil alastra-se, com a cumplicidade das elites, por todas as camadas da população e tem na exaltação da desconfiança o seu franco-atirador mais eficaz. Todos os dias nos deparamos com contratempos que nos tiram do sério e nos fazem involuntariamente gastar tempo com situações que ferem diretamente os nossos direitos e ainda nos ameaçam de todos os tipos de execução. Na semana passada recebi pelos correios uma fatura, com data de vencimento apertada, cobrando a anuidade de um cartão de compras que não solicitei, não autorizei e para o qual não tenho o menor interesse. Tive que descobrir o número do telefone do banco, passar fax com a cópia do documento e explicar tintim por tintim que eles se “enganaram”.
De todos os absurdos provocados pela instituição do Contrato anti-Social brasileiro, esse que invade a nossa privacidade e nos obriga a ter prejuízo de paz de espírito é o que, por sua sutileza peçonhenta, mais me preocupa. Ele está presente na arrogância dos “guardadores” de veículos espalhados pelos mais diversos logradouros da cidade; da mesma maneira que faz cara feia quando pedimos o troco nos restaurantes e a nota fiscal em muitas lojas. Certa vez recebi a conta telefônica com uma ligação a cobrar, feita a partir de uma cidade do interior potiguar, em um final de semana que estávamos todos viajando e o apartamento ficara fechado. Impossível de estar correta, até mesmo porque não conhecíamos ninguém naquele lugar. O valor não era alto, mas deu vontade de não pagar. Apelei para o fornecedor e a resposta foi taxativa: “não há como o sistema estar enganado”. Tive que pagar caro por uma investigação no telefone de origem para poder ser ressarcido do pequeno valor que havia sido cobrado indevidamente.
A ausência de perenidade causada pelo jogo de interesses nas alterações dos nossos contratos públicos é outra anomalia que fere as regras da lógica. Todo ano é sempre a mesma dúvida de quais documentos devemos guardar para a declaração de ajuste do Imposto de Renda. O horário de verão no Nordeste também passa por um troca-troca de liminares fora das raias do bom senso. Nos períodos eleitorais, quem está no poder faz uma nova lei que beneficie a situação e, assim, em um ano o mecanismo da reeleição é acionado e em outros é dispensado. A mesma manobra ludibriante que estão querendo fazer com o plebiscito que há pouco menos de dez anos definiu o presidencialismo como o regime político brasileiro. Se houver ameaça da esquerda chegar ao poder, eles mudam para o parlamentarismo antes. Caso contrário, deixam como está.
Não faz tanto tempo espalhou-se uma embrulhada de multas para quem não andasse com um estojo de primeiros socorros no porta-malas do carro. O argumento era “salvar vidas” em caso de acidentes. Foi um corre-corre às farmácias e, depois de uma tensão danada, constatou-se que era de mentirinha. Fizeram foi sair recolhendo para uma campanha de solidariedade. É desgastante um negócio destes. Talvez tão desgastante quanto o mau esclarecimento das entrelinhas nos contratos dos planos de saúde. As pessoas pagam com sacrifício e quando necessitam podem receber a informação de que aquele plano não contempla o tratamento exigido para salvar suas vidas.
Esses e outros inumeráveis exemplos de desrespeito e estímulo à agressividade, atestam que não está fácil usar as nossas habilidades para construir uma sociedade desejável. Muitos não estão mais resistindo. O próprio Código Penal assegura que a pessoa que lesa o interesse ou bem de terceiros, em situação de necessidade vital, deve ser absolvida. Sabe-se que é impraticável viver em um ambiente sem a intermediação da confiança. Nesse ritmo, acabaremos chegaremos ao infortúnio da Somália, um país que está sem governo a quase dez anos e é controlado por quem anda bem armado ou pode contratar pistoleiros e lucrar inescrupulosamente com a miséria alheia.