Cores do Maranhão
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 7
Terça-feira, 17 de Agosto de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quem não conhece pode até não acreditar, mas a força da cultura popular do Maranhão é um dos mais espetaculares antídotos que temos à mão para fazermos frente à pasteurização consumista que se alastra pelo Brasil. Gente simples, condenada à clausura do analfabetismo e da desigualdade, mas firme no enfrentamento da narrativa possível para o teatro sincretista de louvação à vida. Suas manifestações carregam na dinâmica das cores berrantes e no timbre valente dos tambores todo o ardor da purgação da alma. Cada expressão artística parece brotar de touceiras de arco-íris plantadas pela convergência étnica indígena, negra, européia, árabe e nordestina.
Por cinco séculos a indefinição e subserviência da elite brasileira vê nesse insight de consciência ancestral apenas um perigoso batuque de exotismo da ralé, enfeitado com chapéus, peitilhos, aventais, fitas, penas e lantejoulas multicores. O combate a tais sinais de devoção, pouco controlados pelos códigos dos promotores da incessante colonização, sempre foi intenso e perverso. Até a história conta passagens dessa perseguição voraz. De tanto sonharmos em copiar a quem não somos, vivemos a patética situação de não saber quem somos. Chegamos ao ponto de acreditar que o Hino dos 500 anos do Brasil seria (ou será) uma representação breganeja escolhida pela descabida idiossincrasia de um passageiro ministro do Turismo.
O momento é de delicada degradação incolor. Mas não indolor. Pelo contrário. Surge, então, um desejo especial de reconhecimento e orgulho de tantas riquezas abandonadas pela ignorância que nasce do arremedo. O Maranhão é uma dessas minas culturais, tecida com fibra de buriti. É a vinagreira no arroz parboilizado da mesa nacional. Dá gosto lembrar que ainda dispomos de reservas mestiças como a gente maranhense, movida a maracás, tambor-onça, cabaças e pandeirões. Movida também por muitos deuses e festas, entre bandinhas de metais e caixeiras cantadoras. Toques e passos rompendo a lida e dando vida à estação quilombola e tupinambá.
Como acontece no auto do bumba-meu-boi, a maior representação da cultura popular do Maranhão, essa gente aprendeu a conviver com todas as mortes e ressurreições do dia-a-dia, cultuando os elementos que formam a base da natureza e as entidades divinas do imaginário fértil da miscigenação. Terra, fogo, água e ar destilam-se entre valores patriarcais e celestiais no jogo entre o desejo da mulher amada e o respeito à figura do boi como símbolo intocável da propriedade privada. O boi nasce e morre a cada ano, eternizando o encontro de formas e gêneros de danças e batuques no terreiro da fé e da alegria.
A capacidade arrebatadora da cultura popular maranhense produziu a maior concentração brasileira de sotaques de boi para animar suas festas. Tem boi de orquestra, de viola, matraca e zabumba. E mais, uma ebulição que evoluiu seu requinte folclórico para composições do gênero mpb, disseminadas pioneiramente pelo percussionista Papete em discos e shows. Lembro quando a cantora Diana Pequeno gravou “Engenho de Flores”, de Josias Sobrinho. Fiquei encantado com aquele boi falando de Fortaleza e apitos de engenho de flores chamando para trabalhar.
A ineficácia das ações de cultura como filantropia de mercado, alentada no dirimente frenesi governamental, está dando com os bois n’água, mas os tambores do Maranhão desafiam as autoridades passageiras. A promessa é manter a festa acesa, no Frechal, Maioba, Axixá e Maracanã. Tambor de Crioula, de Mina, Taboca… cafuzo, curiboca, mameluco, o que for. O que vale é o baticum com farinha d’água no azulado mundo da tiquira. Este ambiente está cheio de lendas maravilhosas. O Milagre de Guaxenduba, A Carruagem de Ana Jansen, a Lenda da Manguda e a do Palácio das Lágrimas, são alguns dos contrapontos à realidade que o inconsciente coletivo maranhense criou. Um lugar que tem lenda é muito especial. Em “Atlântida”, Rita Lee esparge para a canção brasileira a inspirada percepção de que “o mundo é dos que sonham que toda lenda é pura verdade”. E pensando bem, não tem muito como ser diferente.
As lendas maranhenses são ricas em fantasias de combates, invasões, lamentos de escravidão, milagres, contrabandos e paixões indígenas. Todas com bastante vigor dramático, devaneios imaculados e presságios extraordinários. Das que conheço, a do Pilão da Madrugada é a que mais me fascina. Essa lenda tem como protagonistas duas velhinhas que moravam na faixa amazônica do Maranhão e toda noite batiam religiosamente em um pilão para orientar as pessoas que se perdiam na floresta. Como espontâneas faroleiras de lanterna sonora, entravam madrugada adentro no paciente ritual de pilar. O que tanto descascavam, nunca se soube, mas a atitude de emitir, dia após dia, solidários acenos noturnos para quem quer que necessitasse de orientação, salvou muitos caçadores afoitos, caminhantes da selva e crianças perdidas por curiosidades errantes. Para elas, não importava o nome, a cor, a crença, o sexo, a estatura, a idade, nem tampouco a razão do vagar de cada um. Queriam ser úteis, nada mais. Queriam dar sentido à vida…
O que mais arrebata inspiração no espírito naturalmente primitivista e psicodélico da gente maranhense é a fantasia espalhada no interior do Estado e derramada nas calçadas e sobrados azulejados da bela São Luís, patrimônio da humanidade. Adultos, adolescentes, crianças misturam-se à moçada da terceira idade para fazer a festa. As radiolas de reggae nas escadarias, o aconchegante teatro Artur Azevedo, os “comeres e beberes” reunidos no maravilhoso livro Pecados da Gula, da dona Zelinda Machado, a medicina popular, a pajelança, os encantos da Praia Grande, Madredeus, o autêntico carnaval popular, a Balaiada, a água doce sobre as dunas crespas e áridas dos Lençois, a lúdica e refrescante Cola Jesus e toda uma variedade de cores, sabores e tambores quentes desenham a expressiva rosa dos ventos cultural maranhense.
Da encenação encantadora do Boizinho Barrica, no sobe e desce de mãos carinhosas em busca de uma estrela apaixonada, ao mix contemporâneo do endiabrado Zeca Baleiro, vejo a cultura maranhense mostrando suas armas, lutando bravamente para não se entregar. Bandeirolas e estandartes no santuário popular, evocando entidades e deuses de todas as cores. Gonçalves Dias, no seu antológico poema “Canção do Exílio” marcou a diferença ao afirmar categoricamente que “As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá”. Era o ano de 1847 e ele estava na Europa, olhando sobre o Atlântico para o distante babaçual guardado na sua recordação nostálgica. Se sobrou um gemido que seja, para o desfrute da dignidade neste Brasil de olhar furtivo, de soslaio e andar trôpego, vamos gemer embriagados, porque o sangue do boi abatido é vinho tinto no odre abençoado de São José de Ribamar.