A tarde do domingo passado (20) estava radiante. Na praça da Igreja do Rosário dos Pretos (e das Pretas), o sombreado de centenários benjamins aguardava a chegada do cortejo que saíra do Passeio Público, em um programa do Movimento Negro Unificado relativo ao Dia da Consciência Negra, em Fortaleza, abrangendo ancestralidades, memórias das Áfricas e a potência da gente negra brasileira.
Rainhas e reis dos maracatus Nação Baobab, Nação Fortaleza, Nação Iracema, Rei Zumbi e Vozes da África se preparavam para a coroação articulada pelo compositor, cantor e produtor cultural Calé Alencar. Estavam ali presentes desde o mestre da cultura Almeida Rainha, do Vozes da África, até o rei novato Paulo Amaro, do Nação Fortaleza.
A escolha do patamar dessa igreja para a coroação coletiva, em seu segundo ano, tem uma simbologia muito forte, haja vista que a capelinha do Rosário, erguida na primeira metade do séc. 18, foi uma conquista da gente negra alforriada, de escravizados e seus descendentes, poucos anos após a elevação de Fortaleza à categoria de vila, em 1726.
À época, esse lugar, que hoje integra o centro histórico de Fortaleza, não passava de um morro de areia afastado cerca de meio quilômetro da vila, que por sua vez ficava às margens do rio Pajeú, nas imediações do forte que dá nome à cidade. Era a periferia e, foi nela que o pequeno templo funcionou como espaço de vivência celebrativa sincrética.
De um lado, mesmo tendo as próprias crenças, as pessoas escravizadas cumpriam atos de devoção leiga às santas e aos santos dos seus senhores e sinhás, como forma de aliviar as dores da realidade em que sobreviviam; e do outro lado, suas donas e seus proprietários sentiam-se mais tranquilos com aquela válvula de escape que reduzia ameaças à economia escravista.
Esse recurso de distensionamento foi utilizado em todo o país em forma de “irmandade de proteção”. Predominaram nessa relação aspectos culturais da corrente congolesa, embora as principais divindades de pele preta oferecidas pela igreja fossem etíopes, como Santa Efigênia e São Elesbão, ou descendentes de escravizados da Etiópia, como São Benedito.
Os povos pretos agiram para transformar essa oportunidade em ocupação de espaços públicos e para a retomada de referências de origem, pelo restabelecimento de vínculos comunitários. Na igreja do Rosário puderam batucar, dançar e até adotar adereços e comportamentos reais em rituais de inversão. A coroação de rainhas e reis do maracatu eleva ao reino das manifestações culturais a luta contra o racismo e pelo fim do neoescravismo em suas diferentes configurações.
No artigo “Maracatu cearense”, publicado neste Vida&Arte, (O POVO, 15/08/2000), falo da mistura de sagrado e profano desse auto de louvação de rostos pretos e tisnados. “Vejo o maior potencial do maracatu como um ritual de iluminação, de passagem do transe do dia a dia para o quase sempre esquecido interior da gente”. Revelação que pode ocorrer em momentos de concentração espiritual ou de diversão carnavalesca.
Coroações negras importam porque, em um mundo ainda tão hostil à equidade, precisamos nos dar conta das vozes dos tambores, da linguagem dos cantos ancestrais, dos efeitos da diáspora e dos destinos da escravidão antes e depois da abolição. A história chega ao presente quando olhamos para trás e vemos o que temos pela frente. O rito da coroação já não é mais religioso. A igreja estava fechada e o sino em silêncio no alto da torre. O cortejo havia chegado e as rainhas e os reis do maracatu foram coroados virados para a praça. Isso diz tudo.