Os contratempos da pandemia do novo coronavírus trouxeram também coisas boas para mim, como o hábito de cozinhar. Lavar o arroz como uma experiência sensorial táctil das mãos com os grãos mergulhados em água na temperatura ambiente; catar o feijão com alegres gesticulações manuais, em escolhas que lembram as brincadeiras de jogar pedrinhas; e escorrer o macarrão na peneira, provocando uma erupção vaporosa e quente, embaçando meus óculos, são conjunções que me aproximam do mundo dos alimentos pelos encantos de suas texturas e generosidades da Terra.
Desde que a Covid-19 deu os primeiros sinais de que havia chegado ao desprotegido Brasil, a Neide, que prepara a alimentação dia após dia na nossa casa, passou a receber sua remuneração, com o respeito e os direitos devidos, para ficar na casa dela com a família, em isolamento social físico. Foi então que assumi a prazerosa tarefa de ser o cozinheiro. No início inventei grolado de toda sorte, até ser destituído da função de preparo das proteínas animais. É que um dia fiz um apetitoso bife atolado na cachaça e fui acusado de ter deixado a comida com gosto de carne com rapadura.
A partir de então, resolvemos comprar as fontes de aminoácidos essenciais já prontas, e eu fiquei com a parte da produção dos acompanhamentos. Isso me possibilitou uma experimentação de combinações gostosa de fazer. É incrível como a relação com os alimentos no processo culinário traz a mensagem de oferta da natureza e a sensação de consumar um ciclo que nasce na fecundação do solo e passa pelo trabalho de tantas e tantas pessoas, até chegar às cozinhas, panelas e fogões, em meio aos mistérios do fogo e da água, no fazer e no prazer do sabor e do saber ancestral do ‘de comer’.
O momento de cada produto, o tempo, o tempero, o cheiro, as formas plásticas dos utensílios, o prato, os talheres, a mesa, tudo tem arte no espetáculo dos nutrientes em festa e comunhão. Enquanto cozinho fico pensando na imensa contribuição desse ato aparentemente simples no processo civilizatório. As refeições são definidoras da vida social desde o comer juntos em torno de fogueiras. É mágico ver o fogo domesticado, suas chamas esvoaçantes e efêmeras sustentadas pelo gás em dutos, vindo originalmente das entranhas do planeta.
A imaginação que deu forma e funcionalidade ao fogo e ao calor para a transformação química do sabor é pioneira na história da ciência. A natureza que entra pela nossa boca, em forma de alimento, é a mesma da qual somos feitos. Passamos por dentro de nós mesmos para sermos o que somos. Sustento, sustança, aroma e paladar estão em um mesmo ritual de seres e ambiente. A vida é comestível para ser vida. Somos processadores e processados na dinâmica de tudo o que vive, que se mexe e que respira.
Em toda a minha vida priorizei comer em casa. Tomo café da manhã, almoço e janto em casa, e ainda tiro uma sesta ao meio-dia. Nos dias atuais, esse hábito custa muito caro em uma sociedade que já não vê como um valor o compartilhar caseiro das refeições. No entanto, o costume que tenho de almoçar em casa não está associado ao preparo da comida por mim. O intervalo reservado para essa atividade social acaba sendo muito reduzido. Mas, agora, na quarentena, estou tendo o privilégio de cozinhar, de meter a concha na panela e sentir o barulho do mar.
Tem sido agradável constatar que a urbanidade não apagou em mim a chama ancestral da necessidade de preparar o alimento para si e para outros. Observando a dança da água em borbulhas e vapor vejo o alimento se aproximando do passado em uma humanidade desarranjada, com vítimas de uma pandemia que morrem por não poderem ficar em casa, e que passam fome enquanto há tantos desperdícios. Estamos todos nessa mesma panela, em uma mistura de mundos, como o arroz asiático e a batata ‘inglesa’ andina, os alimentos migrantes para a ingestão de energia.