Criança em primeiro lugar
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 24 de setembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O tema da criança como prioridade social é uma das bandeiras do Instituto Alana e, este ano, um dos pontos de debate do 12° FIL – Festival Internacional Intercâmbio de Linguagens, realizado aqui no Rio de Janeiro, evento que abriga ainda o I Fórum Nacional Cultura Infância. Em palestra realizada ontem (23) no auditório da OI Futuro, compartilhei cinco experiências da minha interação pai-filho, mediadas pela música e pela literatura.

1. Acolhimento – Para cada um dos meus dois filhos eu preparei um CD de cantigas infantis, que eles ouviram em primeira mão na hora do parto. Levei o toca-discos à maternidade e eles nasceram ouvindo as músicas compostas especialmente para acolhê-los.

Em 1999, no CD feito para o Lucas, trabalhei temas e sons da minha infância, como as brincadeiras de tomar banho de chuva e o hábito do cafuné na hora de dormir. Dois anos depois, em 2001, no CD produzido para receber o Artur, houve um acréscimo de elementos da vivência com o irmão dele, em composições que falam de banho de sol e brincadeiras de tum-tum. Essa experiência contou com a participação direta deles em vários momentos e acabou virando o livro e o show “Flor de Maravilha”.

2. Sociabilidade – Escolhi a Festa do Saci para o meu relato sobre sociabilidade por entender que das experiências de estímulo à convivência com diversidade e pluralidade, esta foi a nossa mais intensa, mais participativa e mais multiplicadora. Começou em 2007 em um evento da Sociedade de Observadores de Saci – Sosaci, realizado no Museu Afro Brasil, em São Paulo, no qual o meu livro “Festa do Saci” fez parte da exposição, e os meus filhos se divertiram em brincadeiras como a corrida em uma perna só.

Durante os três anos seguintes fizemos festa do saci no condomínio em que moramos. A participação dos nossos filhos se deu na escolha do repertório das músicas, na arrumação do cenário, no convite aos amigos e na definição de um conceito anticonsumista, capaz de fazer frente à festa estadunidense do Halloween. O único momento da festa do qual os nossos filhos não fizeram parte da concepção foi a “aparição do saci”; pois preferimos deixá-los sentir juntamente com os amigos a grandeza desse ato imaginativo.

3. Visão cultural comparada – De 2003 a 2013 fizemos regularmente um jornal intitulado “Aventuras”, com narrativas das nossas viagens. Durante toda a infância, os nossos filhos não tiveram filmadoras. Optamos pela máquina fotográfica como recurso de educação do olhar. A foto exige que o observador escolha o objeto e que faça um enquadramento antes de clicar.

Examinando a coleção desse jornal, dá para acompanhar a evolução dos nossos filhos no avanço dos códigos de comunicação. Nas primeiras edições, eles participam com desenhos e alguns títulos feitos à mão. Em seguida, começam a fazer textos manuscritos. A nossa preocupação com o consumismo entra em sintonia com eles nos anúncios de antipublicidade que passamos a fazer juntos a cada edição. E vieram os diários de bordo, os textos digitados e as páginas onde as fotos falam por si.

4. Parcerias orgânicas – Como o filho do carpinteiro que segura casualmente a ponta da madeira para o pai serrar, meus filhos passaram a me ajudar no trabalho literário e musical. No livro-CD “A casa do meu melhor amigo”, chego a contar com a parceria deles dois em composições que revelam claramente o temperamento de cada um. Como escrevo meus trabalhos no mesmo escritório em que eles fazem as tarefas escolares e gosto de mostrar a eles o que estou produzindo, é natural receber suas valiosas contribuições.

5. Celebração da infância – Um belo dia, nos demos conta de que chegara o momento de darmos o salto na curva de crescimento. Pensamos em celebrar o tanto que fizemos juntos durante a infância deles, o que não foi pouca coisa. Começamos pela escolha dos livros preferidos, aqueles que eles mais gostaram, principalmente entre os que lemos juntos na hora de dormir. Depois de uma longa troca de impressões eles chegaram a doze títulos e, dessa dúzia, escolheram “Os irmãos coração de leão”, de Astrid Lindgren, como o número um.

Fomos, então, nos organizar para conhecer de perto o ambiente onde brotara aquela história. Notamos que, além da Suécia, os demais países da Escandinávia também ofereciam referências essenciais que tinham ligações com o aprendizado dialógico da nossa relação pais e filhos, tanto na interação com as expressões humanas manifestadas nas esculturas de Vigeland, na Noruega, quanto no reino da imaginação, onde se dão os contos de Andersen, e no lugarzinho concreto do interior da Dinamarca onde nasceu a Lego.

Usufruímos de tudo isso e ainda reforçamos em nós a compreensão de que a maior riqueza de um povo está na valorização da sua cultura comunitária, na qual predomina o respeito ao espaço público e ao bem comum como parâmetro norteador, inclusive dos interesses privados. E, quanto ao aprendizado da “criança em primeiro lugar”, seguimos cantando a música “Olho Mágico” (Anna Torres / Flávio Paiva) que diz assim: “Não olhe por mim / Olhe pra mim”. Assim, assim!