Tenho a mania de comprar livros e de guardá-los para ler quando chegar o momento certo. Foi assim, motivado pela revelação de uma mãe que publicou nas redes sociais a comovente foto de uma criança dormindo na calçada, tendo como música de fundo a composição Bolhas de Sabão, um funk de ninar para acordar gente grande feito duas décadas atrás por mim, em parceria com João Monteiro Vasconcelos, que tratei de ler a novela Comédia Infantil (Marco Zero, 1998), do escritor sueco Henning Mankell (1948 – 2015), inspirada na história de um menino em situação de rua, na segunda metade da década de 1970, no tempo da guerra civil moçambicana.
A desconstrução das bases de país ocorrida atualmente no Brasil tem seu nível crítico comum a esses conflitos em que participam grupos que negligenciam os valores republicanos em suas ações de luta pelo poder. Como a infância tende a ser sempre vítima dramática dessas circunstâncias de abusos e brutalidades físicas e simbólicas, esse tipo de literatura aproxima sentimentos muitas vezes pouco claros, considerando que, para muita gente, a criança sem casa onde ficar integra uma realidade distante, e o que aconteceu com o protagonista da obra de Mankell está no cômputo das tantas memórias abandonadas.
O pequeno Nélio viu sua aldeia ser incendiada, quando foi capturado e separado da família e dos amigos para se tornar matador, mesmo tendo apenas dez anos de idade. Conseguiu escapar desse destino. Em sua fuga chega a Maputo, a capital e maior cidade do país, na costa do oceano Índico, onde passa a conviver com outras crianças que tinham a sobrevivência como única missão de vida. Aprende a manter os olhos abertos na dinâmica urbana das gangues, das latas de lixo, das caixas de papelão e da moradia em sucata de carro e, particularmente, na estátua equestre de um colonizador, desenvolvendo uma apurada consciência sobre a vida e a morte.
Certo dia Nélio é baleado por seguranças no palco iluminado de uma casa de espetáculos, ao brincar de ator no meio de um cenário que ainda não tinha entrado em cartaz. Socorrido por um padeiro solitário, que o leva para o telhado do prédio misto de teatro e padaria onde mora, o garoto deixa para esclarecer o que houve naquela noite somente depois de o padeiro concordar que o deixaria libertar a alma contando a própria história; uma história de descobertas dos acontecimentos inesperados do mundo.
No mundo oral de Nélio não se conta uma história, se revive. E o enredo dos poucos anos vividos por ele não se limita a casos de sequestro, pobreza ou abandono, mas de onde a insensibilidade humana é capaz de chegar. Em um trecho da narrativa ele diz ao padeiro que não tem medo de ser esquecido, que sua vontade de contar a história que viveu é para que os adultos não esqueçam de quem são. Esse tipo de epifania mostra que, mesmo à beira da morte, o menino conseguia fazer a diferença entre estar com medo e estar preocupado.
Ao terminar de ouvir a história de Nélio e de ter cremado seu corpo no forno da padaria, o padeiro percebe que também tinha chegado ao fundo de sua própria história. Abandona o emprego para viver nas ruas mendigando e falando de Nélio aos ventos que sopram do mar. Faz isso como uma maneira de dar aos outros a oportunidade de serem generosos com o próximo, e como busca de sentido em um mundo no qual tentar esquecer é mais importante do que lembrar.