Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quintas-feiras, 04, 11 e 18 de Dezembro de 2008 e 08 e 15 de Janeiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parte I, 4 de Dezembro de 2008
Desde que o Ministério da Cultura colocou em suas diretrizes estratégicas (2005) que implantaria no Brasil a gestão de licenciamento de música através de “creative commons”, que procuro descobrir o que significaria mesmo essa decisão tão contundente e apressada do Minc. Em 2007, cheguei a uma primeira conclusão de que por trás de tudo isso há, na verdade, uma guerra entre dois sistemas econômicos de exploração de conteúdos e que, nessa disputa, os autores estão sendo ameaçados de desapropriação. Em artigo intitulado “O direito de autor no mercado digital” (DN, 08/11/2007) escrevi que as obras autorais passaram a ser o pau-brasil, a cana-de-açúcar, o ouro e a prata, enfim, o bem mais valioso da economia da era das navegações virtuais.
Para legitimar a sua decisão o Minc criou alguns fóruns de debates e saiu pelo Brasil tentando validar o que chama de “acesso à cultura e novas tecnologias” na “proteção da diversidade cultural”. Mas nada de esclarecer qual é mesmo o propósito da ONG norte-americana Creative Commons, que, sob um discurso humanitário de igualdade, lançou em 2002 um projeto mundial de gestão de Direitos Autorais, baseado na indução dos autores a renunciarem publicamente, no todo ou em parte, a direitos que lhes são conferidos por lei, em nome da linha evolutiva da condição humana e do progresso contínuo das ciências e das artes. Como não se sabe quem bancou a estruturação dessa entidade, fica no ar a desconfiança se ela não poderia ser um instrumento “laranja” dos novos mercadores de conteúdos, tais como Microsoft, Google e Yahoo, para obtenção gratuita de matéria-prima para seus negócios.
O discurso do CC se coaduna com as argumentações que levaram a Unesco, órgão das Nações Unidas que trata da cultura no mundo, a partir dos interesses políticos e econômicos do G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá), a mudar de posição com relação ao Direito de Autor, na Convenção da Diversidade Cultural (2005). Assim, em benefício da livre concorrência, mas em nome da “função social” da propriedade intelectual, o patrimônio imaterial dos povos deve ser regido por um marco jurídico focado no “acesso eqüitativo às expressões culturais” e na “abertura às culturas do mundo”. Nada disso me é estranho, pois na lógica mais primitiva do capitalismo toda produção só tem sentido se gerar lucro, de preferência lucro fácil, sempre em cima dos elos mais fracos da cadeia sócio-econômica.
As leis que antes protegiam os autores passariam no novo cenário a proteger as corporações que vendem conteúdos financiados por publicidade e cessão de cadastros de usuários, diante da “ganância” dos autores que insistem em receber pelo seu trabalho. Resolver os problemas de lucro pagando baixos salários e contratando mão-de-obra semi-escrava na periferia global é um modelo incorporado ao estágio de irrealidade capitalista que estourou juntamente com a bolha do sistema financeiro. O saque de ativos imateriais é um dos pontos de sobrevivência e de crescimento do pós-neoliberalismo. Essa foi uma segunda conclusão a que cheguei, depois de ler o livro “Direito Autoral – Paradoxos e Contribuições para a Revisão da Tecnologia Jurídica no Século XXI” (Campus, já com data de 2009), da advogada e professora da PUC/SP, Alessandra Tridente, que adquiri no dia em que fui assistir ao debate “Diversidade Cultural e Direito Autoral”, no Seminário Internacional sobre Direito Autoral, realizado pelo Ministério da Cultura de 26 a 28 de novembro, em Fortaleza.
O livro de Alessandra, por sua coerência com a defesa de desapropriação do Direito de Autor, mais parece uma peça da vulgata das corporações transnacionais pela exploração a baixo custo do mercado de conteúdos no mundo. Valendo-se da visão romântica de que a Internet e as novas tecnologias digitais são por si democráticas, ela apresenta como paradoxos do D.A., uma série de simulações do jogo de simultaneidades na condução do seu propósito de conservar os fundamentos ideológicos de um modelo econômico que está em crise. Pelo seu raciocínio a compreensão de Direito de Autor deveria recuar ao período que antecede o lançamento das bases humanistas no Ocidente (século XVIII) o que facilitaria os avanços hegemônicos na atual transição de mercado, quando a idéia de produto passa a assumir o conceito de serviço.
A gestão por processos colaborativos, mesmo quando arranhada pela melhoria do software de código aberto, está no âmago do mercado de serviços de softwares e de transmissão de texto, voz e vídeo na Internet. É dentro desse escopo que o senso estadunidense de que tudo é mercadoria, criou o “Creative Commons”, como recurso de desapropriação de “bens que qualquer pessoa tem o direito de utilizar sem precisar antes obter a permissão de ninguém”. Não fosse com a intenção de liberar suprimentos gratuitos para o comércio de conteúdos, não teria sentido esses ataques feitos aos Direitos de Autor, pois, não sendo com objetivo de lucro nem de fortalecimento de imagem corporativa e institucional, isso já é um direito de todos. A questão da oportunidade de acesso mútuo entre autores e usuários de cultura é um velho problema que passa, aí sim, por truste, dumping e por outras práticas econômicas desleais.
Lançar mão do comportamento colaborativo do consumidor e sua atuação em redes sociais é uma maneira inteligente das corporações fazerem crescer seus novos modelos de negócios, reduzindo custos, inovando com baixo investimento, intensificando a produtividade sem pagar salários e aumentando a lucratividade. Valem-se para isso de ações de advocacy e da força de entidades multilaterais para conquistar as alterações que precisam promover em marcos legais, de forma a reconfigurar a cadeia de valor, conforme os seus interesses. Em grau de relevância, pode-se dizer que os processos colaborativos estão para a velocidade e para a escala da evolução dos novos segmentos do mercado de conteúdos, como a linha de montagem esteve para a indústria automobilística nas primeiras décadas do século XX.
Ao argumentar que a globalização tornou os direitos de propriedade intelectual um tópico relevante do debate supranacional, Alessandra Tridente faz referências de cumplicidade e admiração ao pensamento de Allan Greenspan, ao valorizar suas afirmações quanto ao esclarecimento das normas de propriedade intelectual como o tema jurídico mais relevante dos próximos 25 anos. Greenspan é o ex-diretor do FED, o banco central dos Estados Unidos, que foi considerado, inclusive por ele mesmo, o principal responsável pelo relaxamento excessivo do controle do sistema financeiro, que permitiu a criação da bolha de dinheiro magnético que, ao explodir, provocou a implosão do neoliberalismo.
Embora sem fazer uma clara distinção entre Propriedade Intelectual e Direito de Autor, Alessandra apresenta bons argumentos quanto enxerga diferença entre a produção intelectual funcional, como os bens de informática, da criação de caráter estético, como as obras artísticas e literárias. Esse me parece ser o ponto-chave do debate. Programas de computadores, criação de softwares, esquematização de processos e bancos de dados, estariam, e eu concordo com a autora, mais coerentes na discussão de Propriedade Intelectual aplicada ao direito industrial e tecnológico. O Direito de Autor deveria realmente ser restrito a arte e a literatura por não, necessariamente, precisar ter vínculos com o mercado para cumprir a sua função.
Parte II – 11 de Dezembro de 2008
A intenção de criação de um novo “software”, do “design” de um sapato e de um “jingle” têm em comum um sentido funcional, quer seja produzido de forma independente ou sob contrato de trabalho. Não é à toa que todos estão grafados com termos impostos pela língua do país que tem o domínio da tecnologia. O que a variante pós-neoliberal resistente às mudanças que estão se processando no mundo está fazendo é se aproveitando da falta de clareza entre o exercício intelectual no desenvolvimento dessas criações e a criação literária, artística e de parte da produção científica, para colocar tudo no mesmo escopo do Direito de Autor. É mais ou menos o que foi feito com a constituição do Terceiro Setor, que diluiu o poder político das ONGs no caldeirão sujo das falsas filantropias.
O que torna discursos como o do Creative Commons sedutores são os aspectos de voluntariado e de libertação contra a injustiça social do patrimonialismo excessivo. Sem deixar claro que sua ação não atinge “alguns patrimônios reservados”, nem que está atrelada a qualquer ideologia, essa fala impressiona. Colocada como oriunda de uma entidade “sem fins lucrativos”, que tudo o que faz é “gratuito” e “colaborativo”, em favor da “transformação de direitos privados em bens públicos”, ela toca facilmente os ouvidos de uma sociedade aflita por não conseguir enxergar horizontes coletivos felizes nas fronteiras do aquecimento global e da seguridade social. Nesse arremesso catártico quem cai na rede é peixe.
O mesmo dogma político-econômico que forjou a noção de que a visibilidade pessoal é uma meta de vida contemporânea, aproveita a semeadura das afinidades por grife do “individualismo tribal”, para ofertar ferramentas “dadivosas” na luta pela conquista de espaços, nos quais os “limites artificiais” do Direito de Autor são apontados como barreiras a serem detonadas por uma espécie de tropa de elite da era digital. Assim como nas legiões estrangeiras do século XIX, compostas por todo tipo de degredados, recrutados para defender os interesses dos países europeus em suas colônias, no exército de internautas, formado, sobretudo, por jovens submetidos a perversas situações de inutilidade, também não é cobrado origem, religião, cor ou classe social, para, em troca de algum sentido para a vida, sair aniquilando autores de cujas obras sequer tiveram a chance de se emocionar.
O lema de motivação dos novos legionários é a luta pela cultura livre, pelo direito de todos serem autores e de poderem ser donos de um veículo de comunicação. Em tese, é uma causa inquestionável. No entanto, a dura realidade alerta que essa movimentação toda não tem o propósito tão grandioso que aparenta. Até Alessandra Tridente, que escreveu o livro “Direito Autoral”, alinhada com o pensamento pós-neoliberal, reconhece timidamente que isso não é possível: “As novas tecnologias não têm o condão de dotar os indivíduos de repentino talento, mas elas permitem que pessoas talentosas que antes não podiam transpor as barreiras de acesso ao mercado criativo tenham agora condição de nele ingressar”. A ressalva da autora não considera os motivos não revelados que estão por trás desse discurso de realização pessoal.
A partir de uma dica do leitor Tiago Campany (que respondeu aos argumentos da primeira parte deste artigo, postada no portal Cultura e Mercado) de que todo o conceito do Creative Commons seria financiado pela Fundação Rockefeller, pedi socorro ao professor Wander Nunes Frota, da UFPI, autor do livro “Auxílio Luxuoso – samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e indústria cultural” (Annablume, 2003), para que ele me ajudasse a descobrir se havia ou não fundamento nesse suposto vínculo. O meu interesse em conhecer o financiador da criação do conceito do Criative Commons está dentro da noção de compreensão da gênese das doutrinas na estrutura da vida social e como elas se desenvolvem para sempre proporem mudanças que garantam a permanência do que está estabelecido.
A verdade é que é mesmo a Rockefeller que está na base de patrocínio das iniciativas da CC. No seu Relatório Anual de 2005 consta uma doação de US$ 250.000,00 (duzentos e cinqüenta mil dólares) para custear a “sustentabilidade organizacional” do Creative Commons. Consta também que essa linha de trabalho da Fundação Rockefeller, voltada para a “propriedade intelectual”, financia também grupos como “Public Knowledge” [Conhecimento Público] e “The Future of Music Coalition” [Coalizão para o Futuro da Música]. Não é, portanto, gente que está para brincadeira. A experiência de construção de monopólios do grupo Rockefeller vem do século XIX, quando, por meio da Standart Oil, atualmente a Exxon, que no Brasil conhecemos como a Esso dos postos de gasolina, e tem sido associada a toda sorte de artifícios de concorrência desleal.
A história do grupo Rockefeller é permeada por acusações de chantagem, suborno, sabotagem, coação e outros truques da guerra comercial suja, utilizados para alijar concorrentes. A petroleira norte-americana tornou-se símbolo de truste, situação em que uma corporação controla o maior número necessário de elos da cadeia produtiva, especialmente os canais de produção e distribuição, de modo a ter total controle do mercado. Na última década, a Exxon tornou-se conhecida por subvencionar centros de “pesquisa” de propaganda e divulgação do ideário neoliberal, segundo o qual “todos os sistemas restritivos deveriam ser afastados para que a livre concorrência criasse riqueza para todos”. Quer dizer, a Fundação Rockefeller tem “know how” de sobra para estimular concretamente conceitos como o do Creative Commons que ao promover a desapropriação dos autores por asfixia do discurso “politicamente correto”, favorece a concentração do poder econômico da venda e distribuição de obras.
Diante dessa complexidade o Ministério da Cultura vem tratando a questão do Direito Autoral a partir do novo marco legal e institucional criado pela Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovado pela Unesco em 2005. A despeito dos conflitos internos entre os países que controlam as decisões das Nações Unidas, o antropólogo Felipe Lindoso, autor do livro “O Brasil pode ser um país de leitores” (Summus, 2004), considera esse tratado um avanço, pois permite o estabelecimento de medidas regulatórias específicas de proteção e de promoção da produção cultural de cada país, o que, concordo com ele, é uma forma de vincular a cultura ao desenvolvimento.
Na fala que apresentou dia 28/11/2008, em Fortaleza, como parte das exposições feitas no fórum de Direitos Autorais, realizado pelo Minc, o coordenador de D.A. do ministério, Marcos Alves de Souza, chamou a atenção para o fato de os direitos autorais estarem na base de toda a cadeia sócio-econômica da cultura, mas, por sua natureza e definição, são integrantes do patrimônio cultural comum da humanidade. Saindo da realidade objetiva, esse argumento se aproxima bastante dos discursos de defesa da internacionalização da Amazônia. Em ilustração quase contraditória, ele menciona que na Convenção da Diversidade os direitos de autor foram tratados “enquanto ativos econômicos e enquanto portadores de identidades, valores e significados”.
Parte III – 18 de Dezembro de 2008
Dentro do recorte de valorização do Direito de Autor na Diversidade Cultural, abre-se um caminho para tirar dos grandes provedores de conteúdos o argumento de que eles produzem apenas bens e serviços de entretenimento e, por isso, insistem em ser regulados apenas por leis da Organização Mundial do Comércio, OMC, que tratam das regras do direito da concorrência. Com base nessa possibilidade, o representante do Minc interpreta a Convenção da Diversidade como um posicionamento “contra o crescente predomínio do liberalismo econômico”, mas sua reflexão política não atenta, pelo menos publicamente, para a ameaça que ela traz no pós-neoliberalismo, de apenas trocar de modelos monopolistas por hegemônicos.
A procura por maior clareza diante do complexo cenário atual, deveria, a priori, distinguir conceitualmente Direito de Autor de Propriedade Intelectual, para eqüalizar o entendimento mínimo por ocasião das discussões promovidas pelo Ministério da Cultura. Porém, mesmo antes de sentar à mesa de debate, o Minc já impôs o uso da licença norte-americana Creative Commons no País, causando uma indesejável ambigüidade na sua postura diante da questão. Esperava-se uma atitude do Minc mais próxima do projeto de Brasil que o governo federal vem tentando construir, com o fortalecimento de laços regionais para o diálogo global. Na China, os responsáveis pela cultura não relutaram em levantar a cabeça para encarar de frente os acontecimentos. Empresas como a Google perderam a hegemonia naquele país porque o governo chinês fortaleceu buscadores locais, como o Baidu.
No tocante ao “acesso eqüitativo a uma rica e diversificada gama de expressões culturais provenientes de todo o mundo”, Marcos Alves de Souza diz que “preocupa o Brasil” o direito autoral ser extremo, o que o torna uma barreira a esse acesso. O problema é que, da boca para fora, o Minc parece combater o tratamento de mero objeto mercadológico dado ao Direito Autoral, mas, na intimidade dos seus “especialistas”, não estaria conseguindo livrar-se dessa tentação. Seria muito bom se o órgão de cultura do governo brasileiro pudesse realmente se colocar além do jogo pós-neoliberal vigente, mas, entre o que se vê e o que se ouve, ficam ecoando palavras de “resguardo das criações humanas de ações predatórias” e nada mais.
O posicionamento da Microsoft é parecido com o do Minc. A empresa de Bill Gates defende que a Propriedade Intelectual seja forte o suficiente para encorajar os artistas e os inventores, enquanto a lei deve ser flexível, também o suficiente, para que as pessoas possam usar o que os outros criam. A Microsoft desenvolveu junto com a Creative Commons uma ferramenta de licenciamento de copyright livre para uso nos programas do Office, sob o argumento de que “trabalhando com a comunidade e o CC” a empresa deu asas a um método simples para autores e usuários construírem “idéias” sem deixar de respeitar a legitimidade da Propriedade Intelectual. Vale observar que em 1976 Gates havia chamado o compartilhamento de software de “roubo” e que as empresas norte-americanas não usam a expressão Direito Autoral, do modelo europeu, mas Propriedade Intelectual, que está mais intimamente ligada a negócios.
Quando o coordenador de Direitos Autorais do Ministério da Cultura esclarece que “o governo brasileiro também compreende que não seria justo prover o acesso às expressões culturais, isto é, a obras protegidas por direitos autorais, sacrificando a proteção do autor” dá vontade de acreditar, embora tais palavras soem como uma concessão quase bondosa, uma liberalidade de gestão. Entretanto, quando se observa nas peças do Minc, a marca do velho “copyright” ligeiramente sobreposta em si mesma no selo do Creative Commons e sua luta pelo fortalecimento da nova hegemonia global no mercado de conteúdos e de significados, a verdade dos símbolos fala mais alto do que a voz hesitante do Minc.
A melhor forma de o Brasil se colocar com altivez nos fóruns multilaterais de cooperação que tratam de cultura é defendendo propostas que não estejam subordinadas diretamente aos interesses econômicos de hegemonia. Cada país, isoladamente ou em agrupamentos regionais, por comunidade lingüística, sentido comum e assemelhamentos culturais, poderia fazer o seu portal e o problema de acesso aos trabalhos autorais estaria bem encaminhado, inclusive nas muitas sociedades ainda desconhecidas. Por que é tão difícil fazer assim, o que parece tão fácil? Porque dessa forma as corporações transnacionais, que querem a manutenção da hegemonia do comércio de conteúdos, não aceitam. Além do mais, essa democratização honesta dos conteúdos culturais quebraria outro tipo de hegemonia que está disseminada na ilusão de que os países que dominam o mundo pela guerra e pelo poder econômico, são também os geradores de valores humanos e estéticos mais recomendáveis para o que chamamos de civilização.
O deslumbramento hiperbólico que sufoca os fins em nome dos meios provoca devaneios nos templários da virtualidade, que passam a propagar apenas a idéia-força da ordem pós-neoliberal, mas sem qualquer aprofundamento com relação aos objetivos que lhes deram razão de existir. Assim, qualquer engano bem assimilado por versões de um direito adquirido no passado pré-iluminista, transforma-se num álibi de moral messiânica, de desejo de enraizamento do mundo tecnológico no cotidiano global, que é empobrecedora da ética humana. A principal alegoria dos defensores do Creative Commons é a recorrência a antigas acepções fósseis da negação do autor. Eles operam a projeção de passados para desatinar a saudável impetuosidade do novo, rumo ao comportamento que lhes interessa.
O resultado dessa perturbação da consciência é que estamos deixando de usufruir mais e melhor da oportunidade histórica que está posta pelo mundo digital, por conta de uma adesão precipitada dos nossos gestores de cultura a engodos pós-neoliberais como o Creative Commons. Temos muito o que compartilhar. O portal eletrônico “Domínio Público”, da Biblioteca Nacional é, por exemplo, uma ferramenta espetacular de disponibilização de obras. Precisaríamos de algo assim para colocar a cultura local na cultura do mundo. O Ministério da Cultura só teria que criar o espaço virtual e um selo tipo “diversidade cultural brasileira” [dcBR], para distribuição de obras com cópias autorizadas para fins de uso livre pela sociedade, limitadas apenas à exploração comercial. Em contrapartida, o Minc forneceria em seu portal o cadastro atualizado do autor, de seus herdeiros ou representantes legais para que fossem facilmente localizados em caso de buscas para finalidades comerciais.
As pessoas que conquistaram o estatuto do software livre, inspiradas na defesa da circulação plena da informação, merecem ser admiradas, mas, por muitas delas não perceberem que a luta na arena do domínio tecnológico é apenas uma variante do mundo contemporâneo, acabam cometendo uns equívocos que precisam ser dissipados. Um deles é o de essas pessoas se sentirem autorizadas a decalcar sua tática vitoriosa para o mundo autoral, vendo-o como mero alvo de dívida simbólica, como simples matéria-prima para processamento digital e muitas vezes como adversário. No âmbito das manifestações artísticas e literárias a estruturação da subjetividade não pode nem deve se restringir à idéia homogeneizante que desconhece o outro como alguém que precisa ser recompensado pelo seu ato criador.
Parte IV – 8 de Janeiro de 2009
O que torna a discussão do Direito de Autor um tanto mais árida é porque este é um direito que tende a ser perseguido por distintos motivos e, assim, acaba misturado a outros direitos com os quais guarda aproximações conceituais. É comum, por exemplo, a associação da criação autoral com uma “idéia” e, esse tipo de desvio de étimo, como os etimólogos chamam o significado mais primitivo de um vocábulo, inclina-se a comprometer interpretações. O mesmo acontece com demandas de proteção emergidas com o desenvolvimento tecnocientífico, como é o caso dos desenvolvedores de software, que foram equivocadamente buscar abrigo nas leis de direito autoral.
Durante a construção desta reflexão, recebi do professor Pablo Ortellado, da USP, um artigo que ele produziu em parceria com a socióloga Maria Caramez Carlotto, sobre “a interação comunidade-mercado na produção do software livre”. De todos os trabalhos que li sobre a questão, a reflexão de Ortellado e Carlotto foi a mais centrada em seu propósito de dar nitidez à complexidade desse problema. Eles abordam da Licença Pública Geral, GLP, desenvolvida no pioneiro projeto GNU (para licenciar os primeiros softwares livres em substituição aos softwares proprietários), ao Copyleft, selo que propõe a licença compulsória das cópias derivadas de obras modificadas, passando pelo Creative Commons, como um recurso de segurança de mais-valia e de retorno dos rendimentos aos reutilizadores de obras copiadas.
Do ponto de vista de que o reutilizador de trabalhos autorais faz inovação e que inovação é criação sobre a criação no mundo empresarial, não me parece adequado envolver o Direito de Autor nessa seara. Para Ortellado e Carlotto, se, por um lado a eficiência do sistema de produção público/científico forçou o sistema privado/empresarial a adotar a produção colaborativa, o fato de muitos programadores, antes voluntários, serem hoje pagos por empresas, estaria curvando “os códigos livres a se fragmentarem em produtos concorrentes proprietários”. E esse tipo de alteração de curso já tem seu próprio histórico, a exemplo da mudança da expressão “software livre” para “software de código aberto”, provocada pela entrada da Netscape e de outras empresas no jogo da produção colaborativa.
Mergulhados na busca de explicações para essa trama, por onde trafegam livres, mas não grátis, os produtos e serviços de corporações como Microsoft, IBM e dos grandes portais de Internet, os autores chamam a atenção para a competição entre produtos mercantis e extra-mercantis. O que estaria se passando na guerra dos softwares e que atinge por adjunção os direitos dos autores de obras artísticas, literárias e científicas, é qualquer coisa análoga aos avanços da concentração do domínio dos alimentos com a imposição dos grãos transgênicos sobre os orgânicos, feitos em nome da superação da fome no mundo. Como as sementes dos saberes e do conhecimento ainda estão nas bibliotecas e no patrimônio intangível dos povos, o “commons” força aspectos de “commodity”, mercadoria produzida em grande quantidade por controle de uma minoria que detém os seus canais de venda e de distribuição.
A ênfase que vem sendo dada ao autor com o advento das mídias digitais e da transmissão instantânea de dados e informação ganha força no âmbito da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, SBAT, que por ser uma organização independente, administrada por artistas, reafirma, em edição especial da Revista de Teatro (nº 518, maio/junho de 2008), a importância do Direito Autoral. Nesta edição, o advogado Sydney Sanches, presidente da Comissão de Direito Autoral da Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, afirma que os meios digitais “põem o autor em primeiro plano” e que “os novos meios representam novas oportunidades” aos produtores de conteúdos. Para ele “nada mais contemporâneo do que prestigiar o criador”. Por isso, o papel do autor na sociedade “não poderá ser suplantado por exigências do mercado”.
Por outro lado, no livro “Direito Autoral – Paradoxos e Contribuições para a Revisão da Tecnologia Jurídica no Século XXI”, a advogada Alessandra Tridente demonstra que percebe bem a oportunidade gerada também para o Direito em decorrência dos conflitos econômicos que envolvem a questão autoral. O encadeamento de argumentações do seu trabalho propõe uma mudança para o passado, quando não havia a compreensão social da importância do autor. Deixando de lado o fato de o mercado já vir há um bom tempo desconstruindo a relação dos autores com o público, ela aduz que “a cultura contemporânea tende a privilegiar a criação de um tipo diferente de obra, valorizando remixagens, releituras, recontextualizações e readaptações de obras já existentes”.
Não consigo supor que haja razão espontânea que nos leve a desejar que os autores não existam. Isso é a mediocrização da condição humana, típica de um modelo de sociedade instrumental, inspirado na supremacia técnica, que está em xeque por ser irracional e desumano. Uma das características desse modelo é o artifício de tornar inoportuna qualquer pessoa que não atenda ao seu padrão e que não se interesse por seus falsos encantos. O desenho desse quadro me leva a uma terceira conclusão; a de que o que está em jogo nisso tudo é uma antinomia de estilos de vida: de um lado, os defensores da permanência de um modelo voraz que está subordinando o ser humano às máquinas que a sua própria inteligência criou; e, do outro, os que estão lutando por uma humanidade capaz de colocar as criações da sua inteligência a serviço da vida e da felicidade.
Ao sugerir que o novo autor se resumiria àquele que remixa, Alessandra Tridente deixa pistas para uma infeliz jurisprudência inspirada na lógica de que os remixadores já são de cara destituídos de Direitos Autorais. O estabelecimento desse senso poderia até servir para socializar conteúdos, mas certamente criaria as condições ideais para o saque de obras por parte dos atores hegemônicos do mercado. Sempre recorrendo aos sofismas de Lawrence Lessing, o mentor do Creative Commons, Alessandra ataca o Direito de Autor por ele ter sido manipulado pela indústria de distribuição de conteúdos nos seus conflitos contra o desenvolvimento tecnológico. E neste caso específico ela tem razão ao citar exemplos da resistência da indústria editorial com relação à chegada da fotocópia Xerox, e da indústria fonográfica, com relação ao advento dos gravadores e videocassetes.
A forma como a argumentação da autora é feita pode conduzir o leitor a uma confusão de interpretação com relação à guerra entre o comércio de conteúdos e uma suposta noção de desnecessidade da existência de direito dos criadores desses conteúdos. Qualquer desatenção na leitura do trabalho de Alessandra Tridente pode nos deixar com a impressão de que os autores estão atrapalhando a socialização do conhecimento, dos saberes e das obras criativas da humanidade, quando, olhando de perto, o que se vê acontecendo, e não faz mal repetir, é uma guerra de modelos de negócios, na qual os Direitos de Autor aparecem para as corporações como vilões da redução de custos e da competitividade.
Parte V – 15 de Janeiro de 2009
Nas páginas do livro “Direito Autoral”, de Alessandra Tridente, podemos encontrar afirmações como a que subordina a modelagem do Direito de Autor à evolução tecnológica, como se a determinação de autoria dependesse da ferramenta de fixação e de transmissão de uma obra. O autor é alguém que, caso não existisse, as obras vinculadas a ele também não existiriam. Alessandra Tridente não reconhece isso. Em conversa que travamos em Fortaleza sobre a questão, ela demonstrou quase uma idéia fixa de que a massificação da Internet e das tecnologias digitais não deixam mais espaço para a valorização da noção de autor e de obra.
Atraída pela mesma ânsia de Fukuyama, ela decreta o “fim do autor” nas páginas do seu livro. O motivo dessa comparação da advogada e professora da disciplina Propriedade Intelectual com o cientista político norte-americano é para ilustrar o quanto as nossas manifestações de conhecimento precisam ser condicionadas a contextos históricos. Não é à toa que há duas décadas, no auge da onda de valorização das ações das empresas “ponto.com”, Francis Fukuyama achou que todos os modelos políticos e econômicos haviam se esgotado, perdendo os parâmetros da realidade e espalhando mundo afora que tínhamos chegado ao “fim da História”. E, como se pode ver, eis a História pregando peças engraçadas nesses arroubos da obediência circunstancial.
A idéia do Ministério da Cultura de promover um debate nacional sobre Direito Autoral teria sido louvável, não fosse o seu compromisso precoce de implantação do Creative Commons no Brasil. Essa amarração compromete a confiança na promessa de que o material elaborado durante esses eventos “será analisado para a produção da síntese final do texto que subsidiará a formulação da política de direito autoral e a necessidade ou não da revisão da Lei Autoral” brasileira. Claro que o relatório vai propor a revisão da legislação. A adaptação do Creative Commons à realidade brasileira já vem sendo feita por influência do Ministério da Cultura, com aplicação em empresas estatais do governo federal e em outras esferas públicas, como a Prefeitura de Fortaleza, que se precipitou em publicar editais de patrocínio cultural com a obrigação compulsória do novo sistema de copyright estadunidense.
O “documento” mais coerente com a defesa da posição tomada pelo Minc é, por incrível que pareça, o livro de Alessandra Tridente, posto à venda por ocasião dos debates. Nele, a autora alega que a capacidade de reproduzir cópias de texto, voz e imagem, com custos de produção bem inferiores aos dos suportes físicos, disponibilizada pelas tecnologias digitais aliadas à Internet, estaria ameaçada pelo direito autoral. O grande empecilho estaria, segundo insinua a autora, nos tais dos autores, que insistem em querer receber pagamento pelo trabalho que realizam. Tentando traduzir tudo isso em caricatura, ela estaria dizendo que o pós-neoliberalismo é coisa de gente grande, de poder de mercado, e não de trabalhador, de poeta, de gente acusada de não compreender ou de não aceitar que a dignidade humana tenha se reduzido a um cartão de crédito ou ao fundamentalismo tecnológico.
A multiplicidade de canais alimentados “colaborativamente” por “não autores”, hipnotizados pelo simulacro da consagração popular, já ganhou o apelido de “cybergrilagem”. Os principais autores que o Creative Commons apresenta com destaque por estarem aplicando a sua licença na liberação de seus novos livros, são Barack Obama, nos Estados Unidos, e Fernando Gabeira, no Rio de Janeiro. Ambos disponibilizaram suas obras em plena campanha eleitoral; um para a presidência dos EEUU e o outro para a prefeitura do Rio de Janeiro.
Os grandes portais como o Yahoo, oferecem opções aos consumidores para que localizem materiais disponíveis sob a licença Criative Commons. O que essas praças virtuais precisam é demonstrar que são bem frequentadas, por isso não podem se restringir a mostrar conteúdos, digamos, “caseiros”. Elas precisam de suprimento de trabalhos autorais para comercializar na extensão do que as novas ferramentas tecnológicas e digitais possibilitam. E isso é normal, em se tratando de competitividade. O que parece esperteza é o banimento do Direito de Autor, em nome da evolução do conhecimento e da universalização da arte e da literatura, sem deixar claro que esse discurso está amparado mesmo é na emergência da cultura como fenômeno central do capitalismo. Basta lembrar a reação do diretor da Creative Commons no Brasil, Ronaldo Lemos, contra os direitos autorais, quando em maio do ano passado o MySpace tentou comercializar na maciota um programa de karaokê com três mil obras da música plural brasileira.
Com o aumento da interdependência entre os povos a gestão do repertório mundial precisa ser tratada conforme a geografia política dos múltiplos centros de poder que estão se configurando no planeta. A quarta conclusão que chego, por não acreditar na validade de artifícios como o da Creative Commons, é que devemos reforçar o senso de emancipação cultural que começa a ganhar corpo com a conquista de mais autonomia política e econômica, nas diversas regiões do planeta. Os países responsáveis pela crise da bolha financeira estão aumentando o protecionismo econômico e os obstáculos às imigrações. Dessa maneira, se a adoção ao Creative Commons já não era uma boa opção, não tem o menor cabimento entregarmos nossos ativos imateriais para controle de quaisquer países que, sabemos, têm a histórica mania colonial de subtrair descaradamente a coisa alheia.
O Brasil, por caráter, é um país aberto. Jorge Caldeira diz que a nossa miscigenação plena nos tornou um povo sem medo de mudar com os outros. Mas uma coisa é ser uma sociedade aberta, inventiva e solidária, e outra coisa é não ter aprendido a lição de que certos deslumbres com armadilhas semânticas não valem a pena. Temos que aprender a recusar essas ofertas muito generosas, como na fábula da porca que recusou a proposta da sua comadre galinha para a abertura de uma sociedade beneficente, cujo objetivo era a doação de merenda escolar. A porca tinha achado a idéia maravilhosa, até saber que a intenção da galinha era entrar com os ovos e ela com o toicinho. A parceria não se efetivou, exatamente por conta da recusa da porca: “Não dá certo não, comadre, porque você está apenas envolvida e eu estou comprometida”.
A quinta conclusão que tiro dessa reflexão é a de que já não devemos mais desperdiçar os ensinamentos que podemos tirar da histórica pressão dos conquistadores de terras indígenas e da pregação de evangelizadores na América, que deixaram muitos rastros a não serem seguidos. Eduardo Galeano relata no “Livro dos Abraços” (L&PM, Porto Alegre, 1991) a reação de um habitante do chaco paraguaio, que se encaixa perfeitamente no sentimento que ronda muitos autores diante do assédio de desapropriação do trabalho criativo apregoado pelo Creative Commons. Conta o escritor uruguaio que ao terminar de ouvir uma proposta de missionários, lida em sua língua nativa, o cacique retruca: “Você coça. E coça bastante, e coça muito bem. Mas onde você coça, não coça”. Inspiro-me no espírito leve e profundo desse índio para dizer: cultura livre, sim; neoliberalismo cultural, não!