Crônica musical da República
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 22 de julho de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
É impressionante como a música é parte inseparável da existência do povo brasileiro. Para tudo fazemos alguma composição, tendo ou não o hábito de tornar público o que criamos, muitas vezes, como simples recursos de sonho, projeção, declaração, catarse ou até de sobrevivência. Não há fato notável da vida brasileira que não tenha sido tema musical, desde problemas de injustiça, migração e desemprego até as questões étnicas, econômicas e míticas.
A vida do país está na música e, no nosso viver, uma das facetas mais amplamente cantadas é a que tem a política como motivo. Senti isso com mais intensidade ao visitar na última sexta-feira (17) a exposição A Música Canta a República, montada no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Acompanhado pelo próprio curador Vladimir Sacchetta, fui refletindo painel por painel o quanto a política está na nossa música como uma prática comum.
O teto, ornamentado por velhos LPs em oscilações aleatórias, vai produzindo insights de reflexo e circularidade durante todo o percurso. Seguindo a cena política republicana em um recorte que se estende de 1902 a 2002, mesmo período que abrange o nascimento e a morte da indústria fonográfica no Brasil, a montagem permite que o visitante abra alguns painéis como alternativa de passagem fora da orientação temporal da mostra.
A construção da imagem da nossa política em sua trajetória republicana está presente em imagens emblemáticas, como a que mostra os carros de reportagem do jornal O Globo, incendiados na manhã do suicídio do presidente Getúlio Vargas (24/8/1954). Diante dessa foto escuta-se no áudioguia a música A Carta de Getúlio (1955), de Silas de Oliveira e Marcolino Ramos, na voz de Moreira da Silva: “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo / coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim”.
As reproduções de imagens de figuras humanas em tamanho real, o que dá ao visitante a oportunidade do olho no olho com os personagens em seus contextos históricos, é outro ponto de capricho desse trabalho que faz parte de uma pesquisa desenvolvida por Franklin Martins. Como fruto dessa pesquisa, o jornalista capixaba está publicando Quem Foi Que Inventou o Brasil? (Nova Fronteira, RJ, 2015), título tirado de um verso da marchinha História do Brasil, de Lamartine Babo, em ritmo de miscigenação: “Foi seu Cabral (os europeus), foram Peri e Ceci (os indígenas), foram Ioiô e Iaiá (os africanos). Ou seja: foi o povo brasileiro” (p.25).
Ao organizar um olhar da história política brasileira por meio da música, com mais de 1.100 composições selecionadas, Franklin Martins trata dos altos e baixos das críticas e bajulações presentes em um repertório produzido ao sabor do tempo presente de cada música. Como sua pesquisa está ancorada na indústria fonográfica e nos canais virtuais da nova economia em rede, há um vácuo com relação ao que se produz de música política no Brasil recente, para além da fala dos rappers, funkeiros e gospels; algo que no texto de apresentação o crítico José Ramos Tinhorão chama de “produção cultural destinada ao gosto da maioria”. Fica para outra vez.