Cultura de dar água na boca
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 3
Domingo, 04 de Abril de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Pouco se atenta para os sabores, cores, aromas e temperos presentes no que a gente come todos os dias, a toda hora, em qualquer lugar. Ao saborear uma tapioca poderíamos estar melhor preparados para sentir algo da contribuição indígena à nossa culinária, sentir o fruto do esforço de quem cuidou da terra para o plantio da mandioca, o suor de quem a colheu e a transportou, a força translúcida do manejo de preparação da goma, a marca dos dedos da cozinheira levando ao fogo e pondo à mesa aquela história quentinha para o nosso paladar.
Esta imagem vale para qualquer alimento, até para os “transgênicos” fast-food e seus gostos previsíveis. A gastronomia é parte do clima, da sabedoria, das expressões artísticas, da química de uma gente. Pode exaltar, apenas retratar ou denunciar suas intenções para com a vida. Quem não percebe a culinária que tem, está prestes à inanição cultural. Um risco que temos corrido no Ceará. O desconhecimento, o desprezo, a falta de políticas estimuladoras dessa riqueza, atestam a cegueira da doutrina indutora do nosso crescimento econômico. O vinho gaúcho não seria o mesmo sem a festa da uva. Da mesma maneira que a lagosta, o caju e a nossa pecuária de pequeno porte teriam muito mais valor se tivessem suas respectivas festividades. Até os folguedos juninos caíram no esquecimento. A política de exportação, sem a devida fermentação cultural, não passa de adereço para a propagação de mão-de-obra barata.
Desprovida de indesejáveis xenofobias, simplesmente para facilitar uma comparação, qualquer pessoa pode facilmente perceber o crescente número de pontos de culinária que vêm de fora para se instalar no Ceará. Ao mesmo tempo, é vergonhosa a pobreza e a mesmice dos cardápios dos nossos restaurantes, barracas de praia, botecos e carrinho de sanduba (1). Alguém pode até dizer: “Êpa! Está cheio de restaurante vendendo carne de carneiro na cidade. É o pau que rola!”. Está bem, é verdade, mas quantos estão imbuídos de motivos que exibem a ambiência da nossa relação com a ovinocultura? Quantos se orgulham de vender carne de carneiro dos Inhamuns? Será que tem algum desses restaurantes oferecendo pelo menos uma dose da original Pingo de Ouro, ainda produzida na Aratuba, como aperitivo, honrando o passado da cachaça cearense? Será que servem algum dos variados sabores de licores caseiros do sr. Alfredo Miranda, produzidos ao som de pífaro lá em Viçosa? Parece que não.
A onda de carne de carneiro que se espalha pelos restaurantes de Fortaleza não tem conceito cultural para assegurar uma continuidade. No próximo ano, esses mesmos estabelecimentos podem estar igualmente animados com a volta da picanha argentina ou do boi goiano e seus exageros hormonais. É este o ponto nevrálgico da questão. Um prato típico assim, não deve ficar à mercê de rompantes volúveis de sobrevivência do mundo econômico informal. Precisa ser visto em toda a sua grandeza, nascida na tradição pecuária do sertão. Cadê a literatura, a música, o cinema, o humor, as artes plásticas, a dança, valorizando esse traço cearense indiscutível?
Perguntas, perguntas e mais perguntas. Está mais do que na hora de perguntar tanto quanto for preciso. Perguntar à exaustão qual o nosso sentido de destino. Quem fizer isso, um pouquinho que seja, vai atentar para o vazio da nossa culinária, no leque de horizontes. Não dá para aferir certeza em um universo extremamente subjetivo, mas às vezes é de se pensar que a adversidade política protetora da nossa fome crônica, tornou meio constrangedora a discussão sobre comida no Ceará. Tomara que esse pensamento esteja errado, pois mesmo livres do pecado capital da gula, teríamos um empecilho cruel à valorização da nossa fecunda culinária.
Outro aspecto que chama a atenção quando se associa gastronomia e cearensidade, é a quantidade e a qualidade dos garçons “chefs de cuisine” que espalhamos mundo afora. É impressionante. Por que teria a diáspora dos cabeças-chatas provocado esse fenômeno? Não dá para acreditar que toda a alquimia dessa gente tenha surgido apenas por conta da necessidade de arranjar trabalho em restaurante do sudeste para ter emprego com comida garantida. É subestimar demais uma raça conhecida pela habilidade, inventividade e capacidade de superação de infortúnios. Os que teimam em voltar e montar o próprio negócio, como o inigualável Faustino, acabam dando toques especiais na arte de cozinhar, fazendo misturas com o que aprenderam e ousando em constantes inovações.
Na folha de abertura do livro que Paloma Amado publicou revelando as receitas dos pratos ingeridos pelos personagens dos livros do seu pai, tem uma encantadora frase de Jorge que diz assim: “Cotinha fazia doce de jaca e ninguém dava nada por Cotinha”. É de se louvar o esforço de muitas pessoas que, reunidas em clubes de gourmets, formais ou não, exercitam a culinária e melhoram a qualidade da comida de um ou outro restaurante. Porém, sem valorizar a Cotinha que está na praia, na serra e no sertão, como alerta Jorge Amado, não tem como ser consistente e contribuir para um equilibrado desenvolvimento econômico-social. Pelo contrário, a cada dia temos menos acesso ao que produzimos, enquanto a estupidez acaba com os pombais no sertão e a pesca predatória inviabiliza a fartura do mar.
O Ceará necessita urgentemente de garimpar na sua história a culinária errante que deseja para instigar a auto-estima da sua gente e para ter diferencial no mercado turístico nordestino. Só em torno das excepcionais manifestações populares originárias do mito do Padre Cícero dá para formatar o paladar do mundo do cangaço, da religiosidade peregrina e da fartura cultural que viceja no Cariri. O que comia Humberto Teixeira no Iguatu quando, ao lado de Luiz Gonzaga, criou o baião, um dos mais importantes ritmos brasileiros? E em Canoa Quebrada, qual o tempero usado pelos pescadores em seus manjares, quando Dragão do Mar partiu para liderar o movimento que acabou com a revenda de escravos no Ceará, fortalecendo significativamente o processo de abolição da escravatura no Brasil?
Perguntas, perguntas e mais perguntas. Não existe culinária sem história, sem gente. Por melhor que seja o sabor e por mais bem ornamentado que esteja, um prato é mais saboroso quando integra o sentimento de um povo. Também não adianta muito a comida ser boa se for servida em toalhas de plástico em recinto de higiene duvidosa. Pensar nisso e agir para entender do negócio é inadiável para a geração de renda e melhoria da qualidade de vida cearense. Mas isso merece uma decisão estratégica categórica. Para se ter uma idéia, a França chegou a ameaçar a não entrar na União Européia se tivesse que, na lenga-lenga da globalização, padronizar seu processo de fabricação de queijos.
A maior fonte de matéria-prima para a nossa gastronomia está em fase de profunda decadência. A cajucultura, que deveria ser tratada com a firmeza e competência com que os franceses cuidam dos seus queijos, está largada às traças de um mercado voraz e autofágico. Sabemos dos valores da cajuína, do potencial do refrigerante de caju, do gosto refinado da carne-de-caju, das pesquisas que evoluem com o cajueiro anão precoce e já produziram picles, molho com pimenta para carne, farinha e tantos outros derivados do caju, mas não costumamos lembrar que essa dádiva comestível foi posta por Deus no nordeste brasileiro e o Ceará ainda dispõe da maior área plantada na região.
Como a gastronomia intuitiva dos índios aproveitava o caju, pouco se ouviu falar. A música, a dança do torém, o mocororó e os demais ingredientes culturais que integram a festa da colheita ainda hoje realizada pelos Tremembé, não fazem parte do nosso orgulho, nem do calendário turístico do Estado. A harmonia alimentar dos índios, baseada em poucas porções de comida várias vezes ao dia, está fora do nosso hábito. A ignorância exterminadora colonial que praticamente baniu os resistentes nativos do nosso mapa, continua reinando, sem se dar conta de que tais diferenças formam o grande segredo do mundo desenhado nessa vigorosa e caótica passagem de milênio.
Temos um livro com 200 receitas de caju, editado pela Embrapa, temos pesquisas com bons resultados de vinho e cat-chup à base de caju e temos as evidências da importância da castanha como amêndoa disputadíssima no mercado internacional. Podem alegar que falta canal de distribuição, que a concorrência do dumping social indiano consegue ser mais desumana, que o sabor do caju é muito exótico para exportar para consumidores acostumados com suco de macã etc etc. Mas falta mesmo é cultura! Falta visão política e ação enérgica nesse sentido. Ser uma referência em tudo o que diz respeito ao caju, deveria ser uma questão de honra da nossa gente.
Assim como em outros lugares a conservação de alimentos se deu em recipientes com azeite ou pelo processo de defumados, a história cearense é rica por ser o berço da charqueada. A vida nômade dos vaqueiros, o ciclo do binômio gado/algodão, os doces da serra, os atributos agronômicos de uma série de plantinhas comestíveis não catalogadas e as oferendas do mar estão postas ao arbítrio da nossa curiosidade, imaginação e capacidade criativa de fazer deliciosas misturas de forno e fogão. Na feira de Cascavel ainda é possível encontrar mantas de carnes desossadas, esticadas nas paredes para curtir ao relento, ao lado de peixes de sol, manzapo, beiju, alfenim e tantas outras iguarias de dar água na boca.
(1) sanduíche