Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 27 de Novembro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Em um texto que escreveu sobre a obra do escritor uruguaio Horácio Quiroga (1878 – 1937), Monteiro Lobato (1882 – 1978) argumenta que a infância precisa de uma “literatura ao ar livre” e para isso necessita que essa literatura seja produzida por quem “viveu a vida”, como Quiroga. Encontrei essa chave de abertura para o respeito à cultura lúdica, no livro “Semear Horizontes” (Ed. UFMG, 2007) da educadora Gabriela Pellegrino Soares, professora de História da América Independente, da Universidade de São Paulo, que comprei na VIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, realizada em Fortaleza de 12 a 21 de novembro de 2008.

A observação de Lobato me chama a atenção para o quanto temos criado de recursos de aproximação da criança com o livro, mas também para o quanto temos sido negligentes com relação ao significado de escrever para crianças. Existem livrinhos de pelúcia, de borracha para morder e de plástico para a hora do banho. Tem livro-brinquedo, em forma de carro, de animal e de figuras geométricas. Com relevo nas páginas e papelão articulado, as lojas estão cheias de publicações. Livros com ilustrações atraentes, mas nem sempre com conteúdo honesto, é o que não falta. E as calçadas das escolas, os espaços das bibliotecas e os stands das feiras são invadidos por livros sem autores, sem alma, livros pardais, a furar os ovos da imaginação com seus bicos disfarçados de nota de um real.

Tive a oportunidade de melhorar a minha percepção com relação à situação do livro e da leitura, ao discutir o tema com uma platéia formada por atentos cuidadores de bibliotecas, em palestra que fiz dia 19/11/2008, no auditório da biblioteca da Universidade de Fortaleza, por ocasião do IV Encontro do Sistema Estadual de Bibliotecas, SEBP, que integrou a programação da VIII Bienal Internacional do Livro do Ceará. Na agradável companhia das educadoras Fátima Portela, professora do Curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Ceará, e Ruth Pontes, coordenadora estadual do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, Proler, conversamos sobre a “dinamização de acervos com a literatura infantil”.

Tanto quanto de bons livros, a biblioteca precisa significar espaço de tempo livre onde a criança possa exercitar a imaginação em diálogos literários que respeitem à sua individualidade, estimulem a sociabilidade e autonomia criativa. Cecília Meireles (1901 – 1964), escritora que abraçou a causa do livro e da leitura, dizia com muita lucidez que as crianças gostam de histórias ricas em conteúdo humano. Maria Amélia Pereira, fundadora e orientadora do centro de estudos Casa Redonda, de Carapicuíba, reforça a atualidade desse conceito ao assegurar que o melhor livro infantil é aquele que expressa a relação do ser humano com o mundo na sua forma mais verdadeira.

A promoção da leitura e a democratização do livro, como política de Estado, decorrente dos ideais republicanos de universalização da educação, é uma bandeira empunhada pelo governo do Ceará, terra que em apenas dois séculos de emancipação política, tem uma biblioteca inaugurada em 1867. Lourenço Filho (1897 – 1970), que em 1922 mudou-se para Fortaleza com a missão de fazer uma reforma na educação pública cearense, comparava a literatura ao jogo e à brincadeira, por entender sua força de atuação preponderante no campo da imaginação e colocava a literatura infantil como complemento à educação escolar na formação plena das pessoas.

O espaço da literatura na educação vem contando com muitas contribuições no último século. Em 1907, a educadora mineira Alexina de Magalhães Pinto (1870 – 1921) publicou um “Esboço provisório de uma biblioteca infantil”. O lema “republicanizar a República” foi utilizados por educadores brasileiros em 1924, dentro do convencimento de que na educação residia o alicerce para o desenvolvimento. Dez anos depois, Anísio Teixeira (1900 – 1971) criou a Biblioteca Popular Infantil do Rio de Janeiro, deliberadamente como um local de encantamento e de pesquisa.

Temas que abordam a questão do “progresso”, sem ser às custas da degradação ambiental, vêm sendo tratados no Brasil pela literatura sincera para crianças desde o começo do século passado, em obras como “A filha da floresta” (Ed. Melhoramentos, 1921), de Thales de Andrade (1890 – 1977) que, em plena onda de urbanização, falava da aventura de viver com simplicidade no campo, “sem luxo e sem se importar com a fama”; e em obras como “A Reforma da Natureza” (Cia Editora Nacional 1941), de Monteiro Lobato, livro no qual a boneca Emília tenta “consertar” o mundo vegetal e animal no Sítio da Dona Benta, enquanto a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) “desconserta” o resto do mundo.

Gabriela Pellegrino lembra bem que uma das principais característica da pedagogia lobatiana é que nela as crianças sempre deixam temporariamente o amparo físico e intelectual dos adultos para, munidos de fantasia, enfrentar os desafios do mundo interior e exterior. Depois de brincarem, retornam para casa “vitoriosas e amadurecidas pelas experiências vividas”. O pensador cubano José Martí (1853 – 1895) dizia que se tivesse que optar entre falar da cultura grega e romana ou dos Astecas, Maias e Incas, ficaria com a segunda opção. Rabindranath Taqgore (1861 – 1941), escritor e educador indiano, também defendia os espaços educacionais como ambientes que as crianças pudessem freqüentar com prazer, porque neles teriam ampla liberdade de brincar, de se relacionar com a natureza e de vivenciar lições de cidadania.

Na Declaração dos Direitos das Crianças, feita em 1927 pela poeta chilena Gabriela Mistral (1889 – 1957), o reconhecimento da infância, como tempo do exercício da criatividade e da sensibilidade aparece como um apelo de permanente atualidade: “Não deixar de pedir para a criança a escola com sol, o livro, as imagens dos contos, nem cessar de dizer não a tudo o que desfigura sua alma e a violenta”. Esta citação está nos estudos de Pellegrino, no qual a ativista das bibliotecas populares, aparece defendendo a combinação de mídias na biblioteca, desde que não derive para a banalidade. Para ela, a leitura, mais do que distração, é um meio que “muitas vezes nos finca melhor em nós mesmos”.

No início do século passado, a “paixão da criatura pela imagem” estava mais direcionada para a novidade do cinema. Hoje, essa atração está mais acentuada nas telas de televisão e de computador. O tempo passa e cada vez mais fica provado que as novas mídias não são inimigas do livro. Quando bem utilizadas podem tornar-se grandes aliadas da difusão do livro e da formação de leitores. A tecnologia precisa ser posta a serviço das pessoas e não o contrário. Das aplicações dos recursos do mundo digital na educação, a de reforço à aproximação da criança com o livro e de estímulo à leitura é sem dúvida uma das mais desejáveis.

A escritora Ana Maria Machado diz que a literatura infantil brasileira só encontra paralelo na literatura infantil inglesa. A diferença é que no Brasil ainda não despertamos para fazer filmes inspirados em nossas próprias histórias infantis. A relação filme e literatura é mágica. Um dia desses, o meu filho Artur, de sete anos, me perguntou qual a razão de a gente vê um filme do Harry Potter em apenas duas horas e de levar mais de um mês para ler o livro, se a história é a mesma. Respondi por linhas gerais, que no filme o diretor escolhe o que quer que a gente veja, enquanto no livro não há escolhas, são os significados que damos às palavras que nos contam a história. E o segredo está na escolha do livro.