Da moral social à moral religiosa
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 21 de janeiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Das macrotendências que disputam a rota discursiva mundial nesse início de século XXI, a do fundamentalismo da guerra ao terrorismo e a do estratagema de uso religioso para fins políticos são as duas mais visíveis e mais violentas na atualidade. Elas forçam a disseminação extremada de suas razões de ser, na conquista de preferências e adesões massivas, que possam legitimar e dar suporte numérico à costura de acordos e desacordos sociais, econômicos e políticos na geopolítica multipolar.
As reações no Brasil, com relação a essas duas megatendências, são bem distintas. O caso da intensa campanha em favor da comoção pelas vítimas do jornal francês Charlie Hebdo não conquistou muitos adeptos no país, talvez porque em seu íntimo a cultura brasileira não aceite a farsa islamofóbica. Já no que diz respeito à ocupação dos espaços políticos com mensagens religiosas, a adesão é crescente, provavelmente por efeito da desmobilização da teologia da libertação e da decepção das pessoas ante a traição da utopia política de esquerda no País.
Um dos mais graves problemas brasileiros da atualidade é essa alteração na interioridade dos atos de parte significativa do poder civil, que vem passando da visão crítica com base nos valores sociais do certo e do errado para a submissão do senso comum ao bem e ao mal, de acordo com o uso político das religiões. Nesse sentido, o Brasil está vulnerável, sobretudo com relação à formação progressiva de um Estado Evangélico, que se enraíza nacionalmente nos parlamentos e nos meios de comunicação de massa.
A nossa fragilidade, nesse aspecto, está na ausência de estímulos à consciência cultural como necessidade individual e coletiva. Melhoramos em condições de consumo e perspectiva de escolaridade, mas entramos em estado de alerta e risco social ao avançarmos em tudo isso sem fortalecimento cultural à altura dos anseios de transformação. Culturalizar o cotidiano é o grande desafio de qualquer sociedade que não quer abrir mão de ter um porquê, um sentido de destino.
O que torna a situação mais crítica é que, de um lado, temos a hipermodernidade em sua dinâmica tecnológica sensacional e persuasiva, e do outro lado, um obscurantismo político em franca potencialização do mercado bélico e das mensagens religiosas, o que cria um enorme abismo formado pela atração novidadeira e pela vitalidade ocasional.
Estamos perdendo civilidade. O mundo sem fronteiras da comunicação não dispensa limites entre vozes distintas e olhares diferenciados. A liberdade de gozar desse mundo de aproximações virtuais, e também físicas, tem sua plataforma nas evidências dos diferentes. Forçar o enquadramento do outro é ruim para todos, por causa da provocação do sentimento de opressão, de impotência e de revolta.
As pessoas necessitam sentir que fazem parte das músicas que tocam e ouvem, a fim de perceberem o viver e a vida social a partir das expectativas de si, enquanto indivíduos eternamente em formação no combinar de subjetividades como sustentação de desejos e quereres. A remodelagem sociocomunicativa do mundo está atingindo um espetacular grau de sofisticação. O colapso dos processos de replicação de hegemonias está anunciado na saturação do mais do mesmo.
Tudo aquilo que não é compatível com o diálogo das culturas está inadequado ao que virá após os tempos de exagero da modernidade. A cultura é um roteador de vozes e agendas que façam sentido aos saberes e conhecimentos reais e válidos do ser pessoa. Só ela oferece condições de rompimento com anacronismos da falta de significado próprio presente na objetividade das imposições de modelagem do ser social.
Na vida dessa sociedade há, porém, espaço para os próximos passos civilizatórios, onde estão os lugares do prazer da reflexão e da contemplação, abrindo horizontes de expectativas às pessoas, grupos e suas culturas. O que parece caótico na atualidade é apenas parte da descoberta de que contamos com muitos sistemas para viver e não apenas com um ou dois.
A conexão de significantes é bem mais efetiva quando existem trocas culturais para além das canalizações de desejos pré-fabricados. Assim, a instabilidade passa a ser um precioso recurso para articulações, mudanças, renovações e abertura a novos sentidos. É impossível gostar de tudo, e isso faz parte da nossa riqueza, pois permite o direito de opção, de apropriação parcial, de convites abertos e seleções inevitáveis.
É difícil dizer não às abordagens fundamentalistas massificadas; todavia, a propaganda extremista sistemática, como a campanha antiterrorismo e o oportunismo tautológico da moral religiosa, inclina-se ao desgaste da padronização do que não pode ser padronizado, que são as culturas em suas essencialidades.
O exagero por tempo prolongado transforma-se em um cárcere hermético, com luzes permanentemente acesas, no qual muitos capitulam, outros perdem o domínio da tolerância e a maioria fica sem noção da realidade. O enfrentamento dessas representações de promoção das convenções estabelecidas requer um incisivo compromisso com a cultura.