Da umbigada banto-paulista
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Quando criança, Rosângela de Macêdo Santos percebia alguns movimentos estranhos em casa, mas não entendia a razão de ter uma família daquele jeito. Por não saber que o pai era careteiro, palhaço de Folia de Reis e contador de histórias, compreendia o comportamento dele como coisa de mentiroso. O tempo passou e um dia ela descobriu a injustiça que sofrera por não ter recebido a própria cultura na infância e se tornou uma educadora social, dirigente da Comunidade Cultural Sambaqui, do Jardim Guarani, distrito de Brasilândia, em São Paulo.

O depoimento de Rosângela é uma das revelações do livro-cd-dvd Batuque de Umbigada – Tietê, Piracicaba e Capivari (São Paulo: Edições Cachueira, 2015), organizado por artistas e pesquisadores comprometidos com a valorização de fontes de recordação e de renovação efetiva das modas (que são criações livres, nos moldes das loas de maracatu) e danças de batuques do oeste paulista, zona de grande concentração de africanos de origem banto do Congo, Angola, Moçambique e de outras regiões centro-africanas; e dos que foram revendidos no mercado interno de escravos para as lavouras de cana e café. Na faixa 22 do CD, a modista Anecide, de Capivari, canta essa sina: “Meu sertão em festa, ô sertão / ai, o meu Ceará /// eu nunca vi mundo girando / eu quero ver mundo girar”.

Esse registro da prática da umbigada no batuque paulista resulta de um trabalho de mais de duas décadas na coleta de textos orais, modas e depoimentos de mestres e novos batuqueiros, realçado por imagens diversas e escritos de pesquisadores. Uma contextualização que começa no século XIX, com referências à caiumba, dança praticada às escondidas, nos matos, que depois recebeu o nome de batuque. Foi nessa época que o maestro Alberto Nepomuceno (1864 – 1920) fustigou terreiros para demonstrar com propriedade que a música e a dança de tambores seria fundamental à música brasileira.

A dança de umbigada tem balanceio para um lado, depois para o outro, giro solo e batida de umbigo com umbigo. Há um assemelhamento com o coco de umbigada nordestino, no que diz respeito à dança em fileiras, aos jogos dos pares e ao canto puxado por um modista para espalhar a percussão e dar lugar à dança. O tambu (tambor principal, escavado em tronco de madeira) faz a marcação da dança e define o compasso da moda, enquanto o quinjengue (tambor em forma de cálice) faz o acompanhamento com a matraca, que, diferentemente das matracas de tacos do bumba meu boi maranhense, funciona com dois paus batendo contra a madeira em ligeira defasagem na batida.

A publicação mostra nos municípios de Tietê, Piracicaba e Capivari pessoas que se reuniram para formar um cluster de batuque de umbigada. Foi, no entanto, necessário romper algumas barreiras morais para que essas festas de acolhimento da alegria e de afirmação das culturas marginalizadas fossem reconhecidas como de valor. Se no senso banto a umbigada de homem e mulher representa harmonia cosmogênica, para o padrão cultural dominante esse gesto não passava de insinuação sexual e, por isso, devia ser reprimido. Trabalhos assim vão contribuindo para o redesenho do tanto que pode ser o Brasil, quando nos permitimos a sedimentação das oportunidades culturais.