De Fortaleza a Independência
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Março de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Em 1976, quando completei 17 anos não tinha como continuar morando em Independência, se existia em mim e nos meus pais a vontade de que eu continuasse estudando. Mudei-me para Fortaleza, onde vivo até hoje. Sempre que posso retorno a minha cidade natal para, como se diz na sabedoria popular, recarregar as baterias. Nos últimos anos tenho notado algumas mudanças positivas na vida da cidade; mudanças essas que eu atribuía basicamente ao aquecimento da economia popular produzido pelas movimentações do Bolsa-Família e de outros programas sociais como o Luz para Todos. E não é só isso.
No feriadão de São José, de 19 a 22 passados, fui a Independência com o coração preparado para sentir o que o lugar onde nasci tinha a me dizer, no momento em que completo 50 anos de idade. Resolvi passar o dia 20, do meu aniversário, com os meus pais e a minha família, “fazendo nada”, só uns com os outros, olhando para o tempo, falando de chuva e do sertão em fantasia verde. Mas resolveu-se ampliar o compartilhamento dessa alegria com alguns amigos com quem gostamos de conversar, desde que em um número bastante reduzido, que pudesse se adequar naturalmente ao ritmo cotidiano da nossa casa, de forma a não quebrar a harmonia do encontro.
O almoço foi à base de carneiro assado e cozido, embora particularmente eu não goste de comer carne de carneiro. Fui criado com eles e não consigo praticar essa “antropofagia” com tranqüilidade. Quando trato desse assunto costumo fazer a caricatura de que comer carneiro seria quase como me alimentar de um irmão meu. Acho que é uma sensação semelhante a das pessoas que não conseguem comer coelho, por considerá-los bonitos, fofinhos e meigos. Paradoxalmente ou não, fico contente ao ver que as pessoas gostam de carne de carneiro. Diante dessa incompatibilidade, pedi a minha mãe para fazer para mim o muncunzá salgado, com milho, feijão e queijo, que só ela sabe preparar.
Como uma história puxa outra, de um simples encontro para comemorar reservadamente um aniversário, me vi renascendo na vitalidade cultural que vem se desenvolvendo em Independência. Dos sinais que me deram esse sentimento, saboreei o primeiro deles em um suco de amora, feito com frutinhas exóticas colhidas no quintal de casa. Meus pais sempre procuraram me dizer por gestos espontâneos que o mundo cabe em nossa casa quando nos sentimos do mundo. Assim, além das culturas tradicionais, eles tentaram valorizar as sementes oleaginosas das favelas sem espinhos e experimentaram a possibilidade de produzir azeitonas, mesmo a partir de um único pé de oliveira que trouxeram d’além mar.
Outro sinal que me alegrou por esses dias foi a vitória de 2 x 0 da seleção de futebol de Independência sobre a seleção de Pedra Branca, no estádio Carneirão, dentro da nona copa intermunicipal de futebol de campo. Fui com os meus filhos e eles vibraram com o resultado. A minha atuação no futebol de Independência foi preponderantemente no futsal. Dos 15 aos 17 anos eu joguei nos times de adultos e o principal deles foi o Palmeiras, que ainda hoje é lembrado com muita simpatia pelos torcedores. A brincadeira era organizada. Tínhamos até um “Palmeirinhas” para fazer as preliminares dos jogos e, vez por outra, viajávamos com um grupo de teatro e de música, para apresentações nas cidades vizinhas onde disputávamos torneios e campeonatos de futebol.
Fiquei muito feliz também com a movimentação cultural da 6ª Romaria das Águas, no assentamento de Cachoeira do Fogo. Meus filhos puderam ver o Mestre Zé Augusto em um espetáculo de caretas no alpendre na casa sede do assentamento. Na despedida, enquanto olhávamos a foto de uma pedra, na qual aparece uma pegada de bebê gigante, uma estudante se aproximou para contar que aquele rastro deu origem a “Lenda do Pé de Anjo”, segundo a qual as crianças que vão ao açude sozinhas tanto podem ser socorridas de afogamentos quanto desaparecerem por interferência do anjo que deixou como aviso o próprio rastro. Comemos o “Pão de Jesus”, feito na própria comunidade com fermento natural e compramos um capote de barro com dois capotezinhos muito bem feitos pelo artesanato local. A Cachoeira do Fogo é um dos Pontos de Cultura do Ministério da Cultura, por ser uma comunidade de rico e vigoroso patrimônio intangível da cultura popular.
Reuni-me com os educadores que criaram a ONG História Viva, uma organização que pretende participar da “transformação social, através da educação e da cultura”. O encontro foi no velho terminal da estação ferroviária, que eles conseguiram, por comodato, para fazer a sede. Tudo isso me encantou muito, sobretudo por saber que boa parte daquelas pessoas vive nos distritos e estuda história. Senti-me fraternalmente acolhido e imediatamente identificado com aquela articulação em favor da formação de sujeitos. Afirmar-se na cultura, na história e na memória dinâmica é ser contemporâneo com consciência e determinação de participar efetivamente das práticas comunitárias que constroem comportamentos e por eles são construídas.
Como se não bastasse tanta novidade boa, para a minha satisfação foi aprovado naquela reunião os termos do edital do “1º Prêmio Literário Escritor Flávio Paiva – 2009”, que tem como objetivo o “Incentivo a leitura e a valorização de novos escritores independencianos” e está aberto à participação de estudantes entre 12 e 17 anos das escolas públicas e privadas do município, nas categorias Crônica, Conto, Poesia e Literatura de Cordel. Com o tema “Independência, minha inspiração” a premiação será feita sempre em agosto, no primeiro sábado que antecede ao Dia do Estudante.
Na minha fala de agradecimento, realcei a coragem que eles tiveram de escolher um autor local, sobretudo por fazermos parte, nós ocidentais, de uma cultura que foi modelada para ter pena e, por isso, tem muita dificuldade de admirar. Mas essas pessoas que estão tocando o projeto História Viva me parecem dispostas a romper com o mundo das aparências e do vazio das metas, para entrar no próprio mundo, onde a esperança ainda dá sinais de vida. Percebo nelas a força de um desejo de dignidade indo além da passividade da rotina e isso me anima.
Um concurso literário é sempre um estímulo à tomada de posição, na medida em que a literatura organiza implícita ou explicitamente formas de se enxergar. E quanto o tema pede, então, o que inspira os estudantes ao senso de pertencimento, torna-se uma agradável tarefa de desvendar horizontes de identificações vividas e sonhadas, recolocadas em narrativas de reaproximação do significante. Ao valorizar a literatura, a História Viva está na verdade valorizando o conteúdo cultural que ela veicula, deslocando domínios tradicionais para a revelação de experiências intersubjetivas e coletivas de comunidade.
Observada a partir da cultura, a história se liberta do tempo seqüencial para ser educação. O presente encarado como resultante de um passado de descontinuidades e desigualdades. Os enunciados que surgirão pela vertente literária certamente contribuirão para o desenvolvimento de um ambiente de flexibilidade perceptiva no qual as minorias historicamente destituídas dos seus próprios saberes se encontrarão para celebrar a autoapropriação do coletivo pelo diálogo intercultural. A combinação de história com literatura e cultura popular atua no campo da experiência social, produzindo um tipo de aprendizagem que se desenvolve por meio da percepção da desconstrução e do ordenamento da realidade.