De quando a Bia era Beatriz
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 10 de dezembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE
op_dequandoabiaerabeatriz

Em uma velha fita de áudio guardada no fundo do baú da casa onde passou a infância, em Niterói, a compositora e cantora Bia Bedran encontrou gravações feitas por ela quando menina. Letras e músicas de sua autoria, nas quais expressa gracioso primor. O tesouro encontrado revela a música como recurso de exploração de si e do mundo ao seu redor. Compor e cantar era seu jeito de tomar consciência do que sentia e pensava.

Parte desse achado ela gravou com novos e leves arranjos no CD “Beatriz” (Angelus, 2013), com direito a foto do banco onde costumava sentar para compor, enquanto contemplava o mar e o verde do lugar onde morava. No encarte, ela, menina, em companhia do inseparável amigo violão. Na faixa bônus, uma surpresa emocionante: trechos de entrevistas e da Bia tocando e cantando quando era Beatriz.

O operador de gravação anuncia que o samba “Calmaria”, com letra e música de Beatriz Martini Bedran, se trata de um teste para a gravadora Odeon. E, com eloquência, ela toca e canta: “Corte as amarras do passado / deixe o barco da vida velejar no velho mar / e no mar do nosso destino / o futuro é tão menino / não se deixe derrotar / Solte as velas da fantasia / armado de poesia…”.

É encantadora a entonação que vem de dentro da Beatriz (uma das marcas do contar de Bia Bedran) em sua conversa com uma entrevistadora:

– Beatriz, quantos anos você tem?

– Tenho 12 anos.

– Você faz música há quanto tempo?

– Ah, eu faço música há bastante tempo!

O CD “Beatriz” traz a artista na nascente do sentimento estético de uma relação bem Caymmi com o mar. Para o cientista musical suíço Walter Howard, cada ser humano possui um tempo interior que corresponde à sua natureza e ao seu grau de vitalidade para o fazer musical: “Criar música supõe evidentemente que ela exista primeiro interiormente. A obra não existe somente a partir do momento em que é escrita ou escutada” (La música y el niño, p.116, Eudeba, Buenos Aires, 1961)

Não é à toa que a própria Bia Bedran escreve na apresentação do disco que se deparar com suas criações musicais de infância “foi como encontrar a nascente de um rio”. Esse formidável documento é tudo isso traduzido pela relação entre os sons e os sonhos de criança da mais importante e significativa compositora e cantora brasileira de músicas infantis. É muito interessante observar os temas que tocavam os sentimentos da Bia quando ela era Beatriz.

Afeita à contemplação, ela mostra que “É de repente que a estrela cadente / Lá no alto deixa um rastro de luz”; que “O vento sopra / para as ondas agitar / O vento sopra / para as folhas balançar”; que a jangadinha “Prepara sua rede prepara sua sorte / Será que enfrenta a vida, será que enfrenta a morte”; e que “As maravilhas do mundo são essas / Um barquinho o céu e o mar”.

Como essas composições foram feitas no auge da Guerra do Vietnã, um dos conflitos mais violentos do século passado, a pequena Beatriz refletia o clima de guerra em suas canções. Em uma composição ela diz: “Este sol de repente chora / Ao lembrar da guerra lá fora / E se a guerra não terminar / Como é que se vai amar”. Em outra: “Bom dia gente que ama flor / bom dia o mar o céu a terra / enfim a cor (…) Não dar bom dia é falta de educação / Mas para a guerra eu não dou bom dia não”.

Nas suas réplicas aos sinais dos tempos estava o sentimento de justiça, culpa e inocência: “Eu penso num réu sentado calado / Pensando pensando / Quem pode ler seu pensamento / Quem pode saber sua verdade / Se agiu direito se pensou primeiro / Por isso eu pergunto / Sim-não-sim-não”. E expressões de animismo: “Riacho, só eu sei dizer / Por que vai cantando sem mais voltar / Pedra em pedra leva minha alegria / Tristeza deixa ficar (…) Riacho / a canção que eu cantava / Vai rolando com você”.

Quando a Bia era Beatriz, fez cantiga de descoberta do amar: “Você sabe o que é o ciúme / Você sabe o jeitinho de andar / Você sabe a fórmula certa / De fazer alguém chorar”. E canções de parabéns aos avós: “Vó (…) você é linda assim cheia de amor (…) seu cabelo é de prata”; e “Vovô seu cabelo branco / Tanta coisa nos diz / Diz um passado de glória / E um presente feliz”.

A pureza e a integralidade do CD “Beatriz” inspirou a escritora cearense Fabiana Guimarães a fazer o livro “Dona Biazinha” (Armazém da Cultura), com ilustrações de Suzana Paz, lançado no sábado passado (6), na Bienal do Livro de Fortaleza. Em um poema narrativo cheio de referências às letras da menina Beatriz, ela homenageia Bia Bedran. “Dona Biazinha morava dentro da menina Beatriz” (…) “E o seu quintal era musical”.

E segue assim, verso por verso: “Velejava a jangadinha” (…) “Sofria com o desamor / que o mundo gerou” (…) “Na beira do mar / se pôs a cantar” (…) “Seus olhos brilhavam / iguais as estrelas” (…) “Dona Biazinha foi surgindo / entre notas entoadas / Com voz toda impostada / no sorriso da menina / que madura interpretava”. Além do CD “Beatriz”, Fabiana faz referência a dois clássicos da Bia, “O Anel” e “Pedalinho”: “No anel que se perdeu / nas ondas brancas do mar / pedalando o pedalinho / muito pôde viajar”.