Degustação cultural
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Segunda-feira, 08 de Janeiro de 2001 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No feriado de oito de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, bateu uma vontade de ir conhecer o Museu da Cachaça em Maranguape. Há um bom tempo eu não andava naquela cidade que fora um dos meus lugares prediletos de lazer na adolescência. O acesso está muito bom. A rodovia é praticamente toda nova e bem pavimentada. A sinalização para chegar ao museu não deixa dúvidas — o que também é uma novidade nas estradas do Ceará. Ao deixar o asfalto, percorre-se cerca de cinco quilômetros em estrada carroçável, com direito a passar por uma pequena ponte sobre o riacho Lameirão e cruzar a simpática agrovila do Coité. O percurso total é de 30 quilômetros.
Logo na chegada comecei a perceber que valera a pena ter ido. O lugar tem estilo, é uma das botijas do Brasil colonial. Sente-se nas fachadas caiadas, com portas, alizares e janelas azuis, e no ar, com cheiro da cana-de-açúcar, que aquela estrutura merecia mesmo ser transformada em museu. Toda vez que nasce um museu a história é anunciada novamente, ressurgindo em novas versões. É o nosso ideal transcendental que vai despertando pela vontade de perpetuação. Algo que está além do que somos pedindo ao outro que veja o quanto temos para mostrar. Um acervo precioso, cheio de histórias, de detalhes pessoais e coletivos torna-se indissociável da vida comunitária que o gerou.
A visitação é prazeirosa. Textos, fotografias, vídeos, utensílios, máquinas, equipamentos e simulação de processos conduzem a nossa curiosidade pelo universo da cachaça, com foco na história da fábrica de aguardentes Ypióca e seu conjunto de bens culturais acumulados e preservados desde 1846, cinco anos antes da própria criação do município de Maranguape. Cada momento dessa trajetória que se nos vai chegando, sala após sala, coloca-nos frente a frente com um tempo pleno de significados fundadores da brasilidade. Nesse inusitado Ceará, onde a sociedade tem sido historicamente expropriada de suas referências culturais, o Museu da Cachaça é uma feliz manifestação de marketing.
A relação de quatro gerações da família Telles com a produção da mais popular bebida brasileira apresenta-se em uma dimensão bem mais encorpada naquele espaço de caprichada contextualização. Só senti falta de uma homenagem que para os tempos atuais teria grande valor. Senti falta de um cantinho específico dedicado aos escravos, descendentes de escravos, plantadores e cortadores de cana, trabalhadores das moendas, enfim, um monumento aos protagonistas anônimos. Da mesma maneira que houve o cuidado com a explicação de todo o processo de concepção da marca Ypióca e seu significado tupi-guarani de “terra roxa”, penso que caberia um destaque principalmente ao homem negro que moveu literalmente o negócio em circunstâncias historicamente adversas. A atmosfera do museu sugere a presença desse personagem em uma situação que não seja como mero recurso de produção.
A dinâmica dos espaços é estimulante. Há instantes que precisa-se de aproximação e um certo senso de exploração, como na olhadela que se pode dar da cozinha e todos os seus apetrechos domésticos. Em outros, a composição por si é tão envolvente que bastar estar aberto para vivenciar, como na sala dos tonéis e no caminho pelo pequeno trecho de canavial ornamentado sonoramente por sons de corte de cana e vozes de trabalhadores na labuta. A degustação cultural do Museu da Cachaça ganha sabor especial no barzinho com ambientação da primeira metade do século. Enquanto se prova uma velha pinga a música de época toma saudosos corações para uma dança no tempo. Nas paredes, cartazes da Phebo, Cashemire Bouquet, Creme S Pond´s, e outras raridades enfeitam a fantasia leiga.
Maranguape é uma terra de muitas atrações turística pouco ou inadequadamente exploradas. O Museu da Cachaça é um bom sinal de que vale a pena cuidar desse patrimônio. Poderia começar trocando o nome da recém-ampliada rodovia de acesso. Deveríamos chegar a Maranguape por uma rodovia com o nome de Capistrano de Abreu, Chico Anysio… sei lá, um nome que contribuísse para a construção do conceito do lugar e não com nome de político. Quando será que vamos aprender a colocar essas coisas nos seus devidos lugares? De volta para Fortaleza, vinha pensando nisso. Tenho um carinho especial por aquela serra. Muitas e muitas vezes a escalei com grupos de colegas da então Escola Técnica Federal do Ceará. Íamos normalmente para o “castelo”, um casarão colonial com senzala e fonte azulejada para banho. Freqüentei também bastante o “Cascatinha” acompanhado por tios e primos queridos que moravam naquela cidade. E que memória saudável tenho de tudo isso!
Certamente que a minha relação afetiva com Maranguape estimulou-me a esmiuçar o que pude no Museu da Cachaça. Esse equipamento privilegia o município. É bem montado, bem resolvido, bem cuidado, tem boa área externa, o serviço de atendimento é bom e, na sua natureza, pode ser visto como uma referência de exemplaridade cearense. Somente duas coisas me deram um certo sentimento de restrição por ocasião dessa visita: a ausência total de sombra no estacionamento (o que é regra no Ceará) e o caldo de cana congelado na cantina. Graças a Nossa Senhora da Conceição, que casualmente é uma espécie de padroeira do museu, ambos não parecem tão graves assim. Gostei do passeio, valorizou meu feriado e deu para matar um pouco a saudade de Maranguape com novidade positiva e uma lapada da filha-de-senhor-de-engenho.