Deus no altar ecumênico
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Domingo, 24 de Novembro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O espectro que ronda os caminhos da religiosidade apresenta um inimaginável número de variedades de cultos e de ensinamentos. Isso revela a grandeza da subjetividade na jornada humana. Santos pajés, druidas, mestres virtuosos, sacerdotes e mensageiros dos orixás têm cumprido na sucessão dos anos o papel de intermediários de Deus. O mundo mudou, o mundo é mundano. A crise de valores da atualidade, forjada na comercialização do deus-objeto e na veneração da felicidade de consumo, embrutece as pessoas, embora a necessidade de sublimar a vida continue patente no âmago de cada um de nós.
Deus acontece na interseção do viver com a operacionalização da vida. É a liga da existência sustentada na crença, na transcendência e no anseio de libertação da alma. É o que nos leva a inventar e reinventar a ética da bondade, da justiça e da tolerância. A natureza humana quer satisfação, contentamento e bem-estar associados à força motriz dos sonhos, da indignação e da habilidade de realização individual e coletiva que nos move cotidiano afora. E a luz que clareia os recantos menos visíveis dessa natureza não é nada mais, nada menos, ninguém mais, ninguém menos do que a presença divina.
O “outro mundo” pode ser aqui, sem problemas. A salvação pode ser por aqui, sem problemas. O processo verificável de descobertas, experimentações e elevação espiritual da humanidade, no qual a manifestação volitiva proporciona a iluminação divina, é o segredo da invencibilidade da esperança. O templo, o cerimonial e a reverência estão na compreensão, no desprendimento e no ato de viver de cada um, em cada instante de cada lugar. Religião é cultura. Por isso todas padecem da interferência do poder local em qualquer época e sofrem desgastes de interpretações históricas.
A urgência do sagrado nos dias de hoje aparece na falta de sentido religioso e no excesso de coisificação dos mistérios da existência. Matamos o futuro toda vez que mediocrizamos as nossas aspirações. O presentismo e seus encantos efêmeros nos tornam seres insaciáveis, ansiosos e incapazes de distinguir o que é ser feliz e estar pontualmente feliz. Traídos por esse engano muitos apostam nos poderes compensatórios, persuasivos e coercitivos do transe das drogas, da atração da violência e da metanóia dos mercadores da fé. A felicidade não é um artigo de consumo e sim a satisfação plena com a vida em seus altos e baixos.
Deus certamente não ficou velho nem imprestável, mas está internado nos sanatórios e asilos do simulacro da modernidade. Precisamos ressocializá-lo a fim de garantir o ponto de equilíbrio transcendental ausente no sentido da vida e na luta diária pela sobrevivência. A inveja, o ciúme, a vaidade, o egoísmo, o imediatismo e a ignorância do individualismo e da esperteza, assim como todos os vazios das nossas fraquezas propagados pelo frenesi do consumo, ainda podem dar assento à admiração, ao respeito, desapego, generosidade, paciência e à sabedoria da solidariedade movida pelos laços fraternais.
O discurso pela paz, quando dissociado da atitude de contemplação do céu interior, é uma violência porque se torna cínico. Viver em paz não se limita a uma condição absoluta da vontade, mas a muitas maneiras de guerrear pela inclusão do outro. Talvez um dos maiores equívocos cometidos pela cultura da religião tenha sido a criação do diabo, como antítese ao convencimento da importância de Deus. O uso do mal, do medo e do pecado para justificar a necessidade do bem, da fé e da ética divina. Não sei o que seria de Deus sem o contraponto do demônio, mas toda vez que me deparo com o sofrimento resultante de debilidades políticas, econômicas e sociais, interpretadas como lei de causa-e-efeito da moral religiosa, sinto um quê redutor da força de superação das pessoas.
Coloco esse olhar no plano das constatações e não no púlpito de julgamento de ancestralidades. Ocorreu assim, assim estamos. Apesar de tudo, sou um fã ardoroso da raça humana e um admirador do processo evolutivo das civilizações. Penso apenas que nos tempos atuais a felicidade plena deveria ser a motivação primeira das buscas divinas. O acesso a Deus deveria partir de nossas dúvidas, curiosidades e necessidades de harmonia entre o viver, a gestão da vida e a deificação estética. Deus é a poesia do eu-profundo. Na condição de indivíduo culturalmente católico percebo a representação de que os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus como a resplandecência da vida. Esse conceito nos dá uma responsabilidade que extrapola as quizilas do dia-a-dia.
O Deus dos tempos atuais precisa de altares ecumênicos, de ambiências onde o prazer de senti-lo seja mais forte do que qualquer argumentação racional da sua existência. Para isso as religiões deveriam exaltar mais suas nuances filosóficas do que os preceitos dogmáticos. Por que é bom viver e por que vale a pena cuidar dos conflitos naturais da existência? Esta pergunta deveria ser a enzima da transcendência. Estaremos preparados para a felicidade que Deus pode nos oferecer quando, diante de uma bela flor, não mais dissermos que parece de plástico como forma de exultar a sua beleza.