Os músicos foram entrando no palco e arrumando seus instrumentos: Matt Brasil, o teclado, Jeff Moura e Tiago Nunes, os microfones para backing vocal, Gabriel Sousa, Felipe Giffoni e Paulo Ismael, a metaleira, Thais Costa, a percussão, Cláudio Mendes, o baixo, Jully Nobre, a bateria, e Bruno Rafael, a guitarra. Inacreditável: uma banda completa, no aterro da Praia de Iracema, para o show de quatro minas e manas locais.
Isso não é comum em Fortaleza, mas aconteceu sábado passado (26) no Festival Elos. Di Ferreira convidou Mallu Viturino, Lorena Nunes e a Mulher Barbada para cantarem juntas em um trampo dirigido por Cláudio Mendes com som de Yuri Kalil. Pulsante, pop e interseccional em suas camadas e fluxos, o show foi arrebatador; uma baliza da música na cidade em praia aberta, fixada por artistas com trajetórias distintas e alinhamentos existenciais.
Di Ferreira nasceu Dillene no Espírito Santo, mas tornou-se Di no Ceará, depois de fazer covers de artistas internacionais, embalar festas em casas de shows, cantar em churrascaria, em coral universitário e outras experimentações musicais. Entre necessidades, oportunidades e escolhas, foi encontrando suas próprias pegadas no caminho de ser e de autocriar-se.
O show foi um ato de forma em misturas de afro-descendências e brasilidades plurais. Lorena Nunes, depois de testar veredas geracionais, vem plasmando muito bem a trilha da sua etnicidade artística; Mallu Viturino tem negritude orgânica e uma sobrelevada sensibilidade comunitária em sua arte; e a Mulher Barbada, depois de espernear por dignidade em um evento recente, apresentou sua expressividade drag queen com o respeito que merece.
No mesmo palco, elas representam um novo tempo de amadurecimento e regeneração de um país que pede por cabeças cogeracionais arejadas, vinculadas ao passado e ao devir, desapegadas dos determinismos escravizantes do consumismo, dos desejos induzidos, dos ressentimentos e da falsa felicidade de ostentação. Depois do abalo estrutural sofrido pelo Brasil nos últimos anos, sabe-se que ainda não somos nada do que seremos.
Di Ferreira, Mallu, Lorena e Barbada demonstraram essa vontade de evitar o salto reverso para dentro do que se condena, ao cantar “É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte” (Divino, Maravilhoso), de Caetano Veloso; mas também “Essa história está mal contada” (Tudo Novo), de Mallu Viturino. A consciência é que música é feita de amor e política, como disse Chico César em seu catártico show na mesma noite e lugar.
A sociedade precisa desatar o nó da arte, da literatura, das manifestações orgânicas, digitais, integrais e integradas. Quem viu e ouviu esse show certamente se deu conta de que tratar com decência nossos artistas está na ordem do possível. Tem muita gente boa desperdiçada nessa cidade. Mas as oportunidades reais só serão proporcionadas se houver pressão. Não é só curtir o show nas redes e depois largar as artistas e os artistas no balanço caótico da realidade.
A arte se faz, o terreno é fértil, mas todo mundo precisa arar junto para que artistas sejam tratados com dignidade, quer em pequenas apresentações ou em grandes eventos. Isso é uma tarefa de toda a sociedade que quer emancipação. Transformações profundas passam pela arte, pelo viver com o necessário e pelo tempo livre para amar, lutar, escapar dos reducionismos grupais e abraçar toda variedade de viver da biodiversidade humana. “Elos”, que nome instigante para um festival.