Dia da expiação verde e amarela
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 25 de março de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Contam que na antiguidade o povo hebreu costumava escolher um bode para receber simbolicamente as culpas da tribo. Com as mãos na cabeça do caprino eles transferiam para o animal todas as suas responsabilidades pessoais. Em seguida, abandonavam o bode expiatório no deserto. Esse hábito ficou conhecido como dia da expiação.

Na teatralidade da vida política brasileira, estamos repetindo esse ritual de quatro mil anos atrás, movidos pela força de fatos que chegam a ser noticiados até antes de acontecerem.

Enquanto isso, em uma rua deserta e sombria, cinco personagens traçam o nosso destino: o Big Brother Jacaré (figura queixuda, pregadora do ódio social), o Tucano Empalhado (sobrevivente da ordem neoliberal), o Companheiro Faustuoso (espécie de traíra que morre pela boca), o Achacador Renitente (quadrilheiro de alta competência) e a Presidenta Expiatória (remanescente utópica que não sabe com quem foi se meter).

PRIMEIRO ATO (Em torno do poste de um beco sem saída, a conversa é sobre o que fazer para assegurar a conivência da culpada).

Cena I

Big Brother Jacaré (esfuziante) – As pessoas estão no limite e está na hora de capturarmos as potências niilistas e pragmáticas. Temos que aproveitar ao máximo as angústias estruturantes que construímos e promover grandes eventos de rua.

Tucano Empalhado (animado, mas relutante) – Mas qual será a bandeira que dará aos participantes a satisfação substitutiva de expansão da realidade?

Big Brother Jacaré (confiante) – Ah, são muitos os derivativos simbólicos que disseminamos. Inseguros, irritados e desencantados com tantos escândalos, botar o povo nas ruas é tão fácil quanto num dia de jogo de Copa do Mundo ou de um circuito de maratona. Todo mundo quer fazer um selfie verde e amarelo.

Tucano Empalhado (cauteloso) – Você está dizendo que é capaz de fazer uma associação subterrânea do nosso propósito com as cores oficiais do país?

Big Brother Jacaré (todo caviloso) – Fique tranquilo, meu biquinho de plim-plim, o segredo da alienação do pensamento é o engajamento pela intolerância.

Cena II

Companheiro Faustuoso (esboçando pruridos de recaída moral) – O que vocês estão propondo é uma bolha cívica, esquecendo de que é nossa a expertise de mobilização nesse país.

Achacador Renitente (incisivo com o colega de extorsão) – Essa história de que só a esquerda sabe encher as ruas é do tempo em que o povo achava que vocês tinham a reserva da virtude moral e da crítica política. Agora, quem organiza as ruas é a turma conservadora, contando inclusive com uma impetuosa juventude de direita, se você ainda não se deu conta.

Companheiro Faustuoso (um tanto acanhado, mas sem perder a pose) – Ninguém pode nos acusar de não ter feito grandes mudanças no país. As pessoas saíram da miséria, todo mundo usa celular, come um fast-foodzinho…

Achacador Renitente (com olhar irônico) – Isso é fato, mas e a grana grossa que vocês surrupiaram das estatais, as comissões astronômicas e as propinas disfarçadas de doações eleitorais, hein? Não queremos apenas mais cargos, queremos um toquinho dos milhões desviados.

Big Brother Jacaré (firme) – Estamos no processo e queremos a nossa parte também. A insatisfação, o inconformismo, a insegurança e a desconfiança estão soltos.

SEGUNDO ATO (Os personagens deslocam-se mais um pouco para a penumbra, enquanto o Achacador Renitente vai chamar a Presidenta Expiatória)

Cena I

Tucano Empalhado (desabafa) – Se a situação continuar como está, com pobre andando de avião, estudando no exterior, podendo comprar produtos de grife, o que vai ser do nosso orgulho de ter o que os outros não tinham?

Companheiro Faustuoso (compreensivo) – Calma, amigo, vocês precisavam abrir mão de alguma coisa. Agora eu também tenho o que perder e entendo o seu sentimento.

Big Brother Jacaré (com o braço nos ombros do comparsa) – A nossa causa é comum. Os protestos são contra a corrupção, pelo impeachment e um Fora PT que não é nada contra você, que já lavou a burra.

Companheiro Faustuoso (aliviado e cúmplice) – Já que a Presidenta Expiatória insiste em rever a nossa autoconsciência revolucionária e não quer entrar no jogo, deixemos que ela carregue a culpa sozinha com sua incompetência.

Cena II

Presidenta Expiatória (chega logo encarando o Companheiro Faustuoso) – Como é que você quer que a população volte a acreditar na gente se toda vez que um petista é investigado por corrupção, lavagem de dinheiro ou formação de quadrilha, está lá uma claque com bandeiras vermelhas aplaudindo o malfeitor?

Achacador Renitente (intervém) – Se você der uma de durona, deixaremos você à mercê do Tucano Empalhado e do Big Brother Jacaré.

Presidenta Expiatória (indignada) – Eu não sou Getúlio. Não sou Jango. Não sou Collor. Não vou me suicidar. Não faço acordo. Não renuncio.

Achacador Renitente (com a cara lisa) – Então vá sozinha para o deserto e desapareça com a culpa de todo mundo.

Companheiro Faustuoso (irritado) – E lembre-se de que foi você quem escolheu esse fim.

Narrador (com voz de lamento) – Mesmo que expiemos os nossos pecados tribais, o abandono no deserto pode ser a perdição não só dela, mas de todos nós.