Em um país como o Brasil, onde os abismos assimétricos do poder real se mantêm imperturbáveis diante do predomínio da indignidade colonial, da insegurança do preconceito e do rompante populista, a justiça social oscila entre ativismos grupais excludentes, que se estendem do altruísmo justiceiro ao oportunismo conservador, multiplicando ventos de insatisfações e colhendo tempestades de aversões segregadoras. Nada é mais revoltante do que um ato de injustiça. Sentir-se injustiçado produz contração na consciência e expansão nos limites de crença.
E crer demais enfraquece as pessoas socialmente, dificultando o entendimento das divergências inevitáveis que dão sentido ao mundo da política. Se as injustiças acontecem comumente em situações de discriminação e de segregação, é uma contradição pregar as divisões sociais como reparadoras e redutoras dessas injustiças. É o que acontece com a agenda social quando utilizada para a formação de nichos eleitorais e acaba conturbando o ambiente político com assuntos morais.
A política precisa considerar os fundamentos de injustiça defendidos pelos grupos sociais marginalizados tanto quanto as demandas gerais por justiça em saúde, cultura, educação, segurança, economia, relações internacionais e em um sem número de outros campos por onde trafegam interesses e conflitos inerentes às sociedades. O que parece ocorrer no Brasil é uma confusão entre a urgência na redução de injustiças e o conceito ideal de sociedade justa.
A metáfora de três crianças que brigam por uma mesma flauta, utilizada pelo pensador bengalês Amartya Sen no seu livro “A ideia de justiça” (Companhia das Letras, 2011), ilustra bem o quanto as soluções sociais dependem da formação de quem julga: uma criança reivindica a flauta por ser a única das três que sabe tocá-la; a outra diz que merece o instrumento porque é a mais pobre das três e não possui nenhum brinquedo; e a terceira criança argumenta que foi ela quem fez a flauta (pp. 43-45).
As nuanças comparativas de discursos favoráveis às causas justas que compõem os arranjos sociais, expostas de maneira facilmente perceptível nesses três princípios argumentativos de Amartya Sen, dão uma tremenda noção do tamanho do dilema presente nessa questão: um utilitarista defenderia que a flauta fosse entregue à criança que sabe tocá-la; um trabalhista aprovaria a entrega da flauta à criança que a construiu; e um igualitarista daria a flauta à criança mais pobre.
A pluralidade valorativa é parte da condição de vida em sociedade. Em um lugar altamente miscigenado como o território brasileiro, o mestiço seria o catalisador natural do substantivo humano, por ser a mais completa interseção de diferentes matrizes étnicas. Mas para isso precisaríamos de um pensamento próprio e de muito fôlego para a desconstrução das pechas coloniais, seus preconceitos e soluções populistas.
Enquanto não nos mexermos horizontalmente, seguiremos afundando na areia movediça das injustiças sociais. E se mexer horizontalmente quer dizer intensificar o exercício da cidadania orgânica, por meio do qual o bem-estar do todo seja percebido pelo indivíduo como seu também, e, antes de tudo, assegurar a manutenção e a ampliação constante do processo democrático, com debates mais plenos e eleições mais abertas às escolhas sociais. Sem isso, não haverá outros passos.