Dilemas de um mundo em crise
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
O filme “Dois Dias, Uma Noite” (Deux Jours, Une Nuit), Bélgica/França, 2014, dos diretores belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, em cartaz nos cinemas do Dragão do Mar e do Pátio Dom Luís, é uma boa crônica da situação complexa e instável vivida por países da União Europeia que sofrem com o prolongamento recessivo da crise econômica, com as ameaças de destruição do euro e com a tensão nos ambientes de trabalho, provocada pelo fantasma do aumento do subemprego e do desemprego.
De caráter factual e sem apelo ao dualismo do bem e do mal, o drama apresenta bastidores desumanizados do declínio das conquistas dos trabalhadores, tendo como centralidade o comportamento empresarial insensível e o empobrecimento das relações entre colegas de trabalho, jogados uns contra os outros, em uma fábrica de painéis solares.
Com a predominância de uma câmera móvel a acompanhar os passos cambaleantes de uma protagonista apática em busca de tirar forças de onde não tem, o filme aparenta ser tedioso, mas não é bem assim. Por trás do ar enfadonho da sua narrativa quase documental há um condolente potencial de atração sequenciado em circunstâncias que tornam o espectador cúmplice do episódio constrangedor visto na tela.
De modo genérico, o longa-metragem conta a história de Sandra, uma trabalhadora interpretada pela atriz francesa Marion Cotillard, que fica ausente das atividades laborais para se tratar de uma depressão. Ela integra uma equipe de 17 profissionais e, com o seu afastamento, o dono da empresa procura compensar o problema de produtividade pagando horas extras aos 16 que ficam.
A ideia de ter um funcionário a menos é logo entendida pelo patrão como vantajosa para o negócio. A empresa prepara uma estratégia de demissão de Sandra, de maneira que a responsabilidade por esse ato seja percebida como sendo dos funcionários. Assim, o chefe promete um bônus de mil euros para cada empregado direto e faz o mesmo com uma gratificação de cento e cinquenta euros a dois que são terceirizados, desde que eles decidam coletivamente dispensar a colega.
O supervisor pressiona o grupo para que a votação seja favorável à demissão, alegando que, por conta de estar debilitada, a protagonista certamente retornaria pouco produtiva. Insinua ainda que, caso ela volte ao trabalho, a tendência é que mais dia, menos dia, alguém seja desligado em seu lugar. O resultado foi de 14 a 2 sufrágios favoráveis ao bônus.
Inconformada, Juliette, uma funcionária que é próxima de Sandra, procura convencer a amiga de falar com o dono da empresa para que haja nova votação e ele concorda. Isso acontece em uma sexta-feira e a decisão é marcada para a segunda-feira seguinte, tempo que justifica o título do filme, “Dois dias e uma noite”. Ela teria, então, um final de semana para convencer os colegas de trabalho a abrirem mão do bônus salarial, única condição para ter o seu emprego de volta.
O filme é praticamente a peregrinação de Sandra, com o apoio do marido, na tentativa de reverter a situação. Nele, são mostradas as reações positivas e negativas dos colegas de trabalho frente à sua desconfortável missão. É difícil, em um cenário de crise financeira, alguém abrir mão de dinheiro. São vários os conflitos que se revelam no pano de fundo dessa tensão econômica e humana que assola a Europa.
Os comportamentos são diversos, estendendo-se desde o “não” de um companheiro que tem família, filhos e está com a conta de luz e gás atrasados até o “não” de uma colega que havia planejado usar o bônus para reformar a casa. Para dar o “sim” foi preciso contradizer a orientação do supervisor e, em alguns casos, sofrer agressão de filho e de marido, com interesses contrariados. Entre a solidariedade e o egoísmo social, cada contato leva o espectador a testemunhar esses dilemas próprios de um mundo em crise.
Ao mesmo tempo em que trabalhadores pensam na manutenção da gratificação por algum motivo, o filme mostra esforços de consideração. Cena por cena, os irmãos Dardenne procuram mostrar os colegas de Sandra que não podem abrir mão por necessidade e os que não veem sentido em deixar de ganhar o que têm direito para resolver um problema dos outros. Vários personagens têm nomes árabes e alguns complementam a renda ilegalmente em atividades nas horas de folga.
Uma curiosidade de “Dois dias e uma noite” é a ausência de trilha sonora, o que reforça para o espectador o cunho de registro baseado em acontecimentos cotidianos. A música só aparece nos momentos em que os personagens a colocam para tocar; às vezes no carro, purificando espíritos deprimentes ou rompendo estados de abatimentos ao som de rock.
Por incrível que pareça, esse é um filme racional, embora trate de questões morais propícias a serem comoventes. Como entretenimento, não, mas, como fonte de reflexão sobre dignidade, relações humanas e com dinheiro, é um trabalho que merece ser apreciado. Até porque é importante ver como o dilema moral volta para a Sandra no final, e ela não tem dúvida do caminho a tomar.