Há 25 anos lancei o “Samba-le-lê”, álbum de música infantil interpretado pela cantora Olga Ribeiro com direção de Tarcísio Sardinha (1964 – 2022). Foi o primeiro grande show para crianças realizado na Praça Verde do então recém-inaugurado Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. Na capa do disco, uma umbigada de teimosos, em arte brincante do Dim Brinquedim.

Os sons dessas e de outras cantigas infantis, que vieram depois na minha discografia de autor, interatuaram muitas vezes com bonecos e pinturas do Dim em livros, festas e vídeos. De tanto usufruirmos das brincadeiras entre nossas criações, um dia o Dim virou-se para mim e disse que tinha a impressão de que já nos conhecíamos “mesmo antes de nos conhecermos”.

Muitas histórias das nossas peripécias de meninos do interior e de adultos sempre atentos a essas crianças surgiram no âmbito dessa constatação. Até que o Ud Madeiro, filho do Dim, propôs fazermos um videocast que levasse um pouco desses momentos de papos descontraídos para além do nosso circuito familiar e de amigos próximos.

A gravação aconteceu na passagem de 2023 para 2024, quando desfrutávamos, na praia de Paracuru, do “Fazendo Nada com Amigas e Amigos”, programa que vez por outra o povo lá de casa realiza com pessoas do nosso bem-querer. Não tínhamos equipamentos adequados, mas com o apoio desenrolado do Júnior do Santos fizemos o que deu para fazer à base de celular, entre acenos de luz natural e sopros livres de vento.

O bate-papo abriu um leque de lembranças de Camocim e de Independência, as cidades onde nascemos, e onde iniciamos a nossa amizade, como diz o Dim, “mesmo antes de nos conhecermos”. A revelação de nossas “Confluências”, como intitulamos esse videocast experimental de autorreconhecimento e mutualidade, foi feita em diferentes níveis de realidade e contexto pespontados pelo lúdico e pela lucidez; e o resultado pode ser assistido em flaviopaiva59, no Spotify e no YouTube.

Dim Brinquedim e Flávio Paiva por Ud Madeiro

Priorizamos tudo o que constitui a nossa massa bruta, o jeito de falar, muitos termos locais, quase um dialeto; tanto que o Helton Vilar, responsável pela edição, procurou fazer a legendagem com Inteligência Artificial (IA) e a resposta foi uma total incapacidade dessa ferramenta, reprodutora de competências humanas disponíveis no mundo digital, de dar conta da tarefa. Daí as legendas terem sido feitas artesanalmente.

O Dim e eu brincamos no mundo da rua, no reino dos imaginários autônomos, onde os vínculos sociais se dão no campo fabular. Tivemos uma educação não domesticada, cheia de simplicidade e sem simplificações do fato de que a vida é móvel, concreta e abstrata ao mesmo tempo. Procedemos da infância um do outro e talvez isso nos torne apenas fugazmente verificados nas boas práticas de comportamento.

O conteúdo que gravamos é transconceitual. Sem fio condutor e cheio de brechas, de frestas, desvios de rota, ventilações e reticências, o nosso bate-papo acaba contornando as suposições de que é a memória do adulto que o leva às lembranças de infância. Dim e eu conversamos a partir dos meninos que fomos e que se apropriaram de nós para falar de situações relacionadas envolvendo o mar e o sertão por onde navegamos e andamos depois que eles cresceram e se tornaram o que somos.

Abrindo os braços para as oferendas que recebemos e conquistamos da vida, da natureza e da sociedade, e com a confiança que adquirimos para nos aventurar, deixamos fluir as nossas histórias, causos, situações e ‘devaneios reais’, como se estivéssemos correndo atrás de tudo o que dá movimento ao olhar, como os pingos de chuva que transmudei para a música e que o Dim Brinquedim levou para a pintura. Dá-se a ver em “Confluências” que ser criança requer sempre uma ação.

Fonte: 
Jornal O POVO