Dimensões do jogar e do brincar
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 21 de Abril de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A reflexão sobre o brincar na sociedade contemporânea é uma das linhas de abordagem do mestrado em Estudos da Criança, da Universidade do Minho, em Portugal. Foi para conversar acerca desse assunto que no sábado passado, 16, recebi em minha casa a mestranda Luciene Silveira que, sob a orientação do professor Camilo Cunha, vem desenvolvendo em sua dissertação o conceito de cultura vinculado a jogo e brincadeira, como impulsores de criatividade, motricidade e sociabilidade.
O tema me encanta e está tratado por diversas angulações no meu livro “Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo” (Cortez Editora), o que fez com que a pesquisadora me procurasse para essa conversa a respeito do comportamento infantil, da necessidade de mais espaços para brincadeiras, da cultura lúdica e sua diversificação conforme a condição social, o contexto, os valores, as referências simbólicas, as expectativas e possibilidades da criança e suas potencialidades para o desenvolvimento integral, como alicerce da vida em sociedade.
Combinei com a Luciene que compatilharia com você, leitor, os pontos principais da gravação que ela fez comigo e ela gentilmente concordou.
Ela quis saber inicialmente o que representa para mim o jogar e o brincar, na dimensão ontológica. Respondi que no plano do ser enquanto ser, jogar e brincar representa o lúdico, que é próprio da condição humana, independentemente de idade. Daí a importância da combinação da brincadeira com regras, que é o jogo, com a experiência espontânea do brincar, que se realiza exclusivamente ao sabor da imaginação.
E na dimensão antropológica? – ela perguntou. Respondi que, considerando as variações das características dos lugares e dos povos, jogar e brincar integram o âmbito da cultura, que também é própria da condição humana, em todas as suas fases. Uma boa ilustração para esse quê de memória biológica e social é a transfiguração da função de algumas armas, tais como o bumerangue, a espada e a pipa (arraia), quando convertidas em brinquedos.
Assim, o jogar e o brincar englobam nessas duas dimensões um estado complementar de ancestralidade, de experiência de tempo presente e de perspectiva evolucional, cujos fluxos, percebidos ou não, constituem os vínculos inventivos para a exploração prática do real. É a imaginação possibilitando que a criança, mais do que assimilar o meio, desenvolva formas de interferir na sua relação com o ambiente em que vive.
Luciene Silveira quis que eu dissesse o que entendo por cultura e suas dinâmicas. Respondi que cultura é a construção social da realidade. O que possibilita que o real seja configurado de diferentes modos. Cada povo, cada sociedade, cada civilização constrói a sua percepção de realidade, por meio da qual se sustenta culturalmente. Ao se relacionar com o mundo, agindo no cotidiano, produzem interpretações do real que não necessariamente são as mesmas. Neste aspecto, precisamos separar o que há de comum no humano em si do que existe de diferente em sua visão desenvolvida a partir da trama da coletividade.
A história está cheia de exemplos de encontros e choques de realidades, modeladas por diferentes culturas. A realidade da civilização grega, fundada no pensamento refinado, nas leis, na arte, no esporte, na riqueza mitológica e nas ágoras, foi derrotada pela realidade romana, estruturada no poder bélico. A realidade dos preceitos sociais estabelecidos pela força da espiritualidade indiana foi dominada pela realidade inglesa, inspirada no princípio da pirataria. Os processos de ocupação das Américas e das Áfricas, decorrentes das grandes navegações, provam bem as diferentes realidades, definidas pelos modelos mentais de colonizadores e colonizados.
A pesquisadora da Universidade do Minho e eu estamos de acordo com o pensamento do filósofo francês Gilles Brougère, quando este diz que “é necessária a existência do social, de significações a partilhar, de possibilidade de interpretação, portanto, de cultura, para haver o jogo”. Ela fez um recorte no tema e me perguntou qual a relação entre jogo e cultura, na perspectiva educativa e formativa. Respondi que entendo essa perspectiva como definidora de fronteiras na preparação do ser social. É nela que se dá o aprendizado do ganhar e do perder, do aprender a esperar, enfim, do respeito aos padrões determinados nas regras do jogo.
A relação entre jogo e cultura tem grande importância na busca por uma sempre melhor integração das pessoas consigo mesmas e no convívio social. É através desse exercício que todo um conjunto de sensibilidades se desenvolve. Sensibilidades no que diz respeito à tolerância, à alteridade, à memória coletiva e à relação com o espaço e com o tempo. Então, considerando o jogo como leito natural do lúdico e a realidade construída como fruto da cultura, entendo essa relação como condição de relacionamento e sentido de destino indispensáveis para que a humanidade realmente evolua.
Que caminhos ideais e que dificuldades eu observo quando penso em relação intermulticultural, me indagou Luciene Silveira. Respondi que o entrelaçamento de realidades concebidas por diferentes culturas ocorre à medida da percepção de existência de umas com as outras e na forma que elas se dispõem a se relacionar. A complementaridade, a inter-relação e a coacessibilidade são pontos fundamentais dessa questão. Os caminhos ideais passam pelo respeito à diversidade e pela reciprocidade das diferenças. A partir do momento em que um povo compreende que só tem a ganhar com a diferença do outro, tudo fica mais rico e mais harmonioso.
O registro do caráter de sociedade aberta brasileira vem desde o início da colonização, se considerarmos os relatos de antropofagia como recurso de assimilação das características positivas do outro. Salvo em circunstâncias específicas, geradoras de desconfiança, o estrangeiro sempre foi bem recebido no País. Dos relatos do mercenário alemão Hans Staden, que teria escapado de rituais de antropofagia dos Tupinambá, aos textos de historiadores que contam do bispo Sardinha, devorado pelos Caeté, vemos o quanto sentimos necessidade de incorporar o diferencial externo para melhorar a nossa vida. Foi movido por essa noção que Monteiro Lobato criou o Sítio do Picapau Amarelo, como ambientação de brasilidade aberta ao diálogo com tudo o que se passa no mundo, de forma a apreender qualidades globais.
No que tange às dificuldades, coloquei que o mundo inteiro enfrenta o problema das intensas e obstinadas tentativas de hegemonia, sejam econômicas, geopolíticas ou culturais. Os esforços para destruir o referencial do outro, apenas por gana de dominação, levaram o mundo ao atual estado de alerta social e ambiental. Entretanto, torna-se cada vez mais evidente que a reconstrução do planeta carece de compartilhamento. Não dá mais para ser apenas um dizendo o que os outros devem ser e fazer.
Para concluir reforcei a importância do jogar e do brincar como exercício de autoconhecimento e de tomada de consciência da noção de pessoa. Essa prática de se reconhecer na relação com o meio fortalece o sentido de apropriação da realidade construída e das condições de transformação dessa mesma realidade. A imaginação permite ao ser que joga e que brinca o arejar do dom de ressignificar a cultura, para que ele possa construir realidades, consolidando a virtude comum da ética e aperfeiçoando os parâmetros morais do respeito mútuo nas mais diversas realidades.